terça-feira, 3 de maio de 2011

Os efeitos das sentenças de anulação de actos administrativos

No contencioso administrativo prevê-se a existência de acções impugnatórias em que o pedido e a sentença se limitam à anulação de actos administrativos, não sendo obrigatória a cumulação do pedido anulatório com a reconstituição da situação hipotética actual. Levanta-se, portanto, uma questão: qual o efeito destas sentenças de mera anulação? É que o efeito meramente invalidatório não parece satisfazer os interesses do particular (ressalvados certos casos, como por exemplo a anulação de proibições).
O primeiro efeito, o mais directo, que podemos retirar destas sentenças é um efeito “constitutivo”, ou seja, ao invalidar-se o acto administrativo eliminam-se os seus efeitos, tendo por isso a sentença uma eficácia “ex tunc”. Mas, pensar que este é a única consequência deste tipo de sentenças levar-nos-ia a situações em que não se consegue retirar qualquer utilidade da mesma, uma vez que ficaria na discricionariedade da Administração a decisão de concretizar de forma fáctica as decisões anulatórias produzidas com efeitos retroactivos. Contudo, o princípio da separação de poderes impõe que a poder judicial seja exercida pelos tribunais e que o poder executivo o seja pelo Governo (Administração). Como ultrapassar esta barreira constitucional e permitir que o tribunal se “substitua” à Administração e assim se consigam retirar efeitos práticos da sua decisão?
Actualmente, a doutrina e a jurisprudência referem os efeitos “ultra-constitutivos” da sentença de anulação. Importa, contudo, perceber de onde surge este conceito.
Em 1967, FREITAS DO AMARAL formulou o princípio da reconstituição da situação hipotética actual, salientando o dever de a Administração executar a sentença, pondo a situação de facto de acordo com a situação de direito constituída pela decisão de anulação, reconhecendo um efeito reconstitutivo da sentença, efeito este que impõe a reconstrução da situação que teria existido se não tivesse havido aquele acto (entretanto anulado), daí a expressão “situação hipotética actual”. Será, apenas, pensar, hipoteticamente como seria a situação actualmente se o acto que entretanto foi invalidado não houvesse sido praticado, e repor essa mesma situação. Por outro lado, por força deste princípio proíbe-se a reincidência, isto é, conferindo um efeito conformativo à sentença, fica a Administração obrigada a não praticar um acto com os mesmos vícios, sob pena de nulidade por ofensa ao caso julgado. Em princípio, esta nulidade apenas se justifica em caso de ofensa directa do caso julgado – 133º/2 h) CPTA -, podendo, no entanto, atingir outros actos “praticados em desconformidade com a sentença” – Ac. STA de 13/7/95.
Apareceram, ainda, outras ideias, nomeadamente o princípio da execução efectiva, que dita que se possa impor à Administração o dever de reconstituir e alterar situações de facto cuja manutenção seja incompatível com a execução da sentença – hoje contido no art. 173º/2 CPTA. Seguindo a posição de AROSO DE ALMEIDA, este princípio deveria possibilitar ao tribunal conhecer da validade de todos os actos que configurassem o incumprimento ilegítimo do dever de executar a sentença.
Mas, precisamente no nº 1 do artigo supra referido, hoje já podemos perceber com clareza como se resolve esta questão, uma vez que o preceito determina em que consiste este dever de execução da sentença meramente anulatória.
Como salienta VIEIRA DE ANDRADE, “poderia pensar-se, a partir deste regime, que o pedido de anulação na acção administrativa especial deixa de ser um processo sobre a validade de um acto, incorporando um juízo sobre a posição jurídica subjectiva do particular face à Administração, que teria sido lesada pela decisão de autoridade.” Na sequência desta concepção, passava a ser diferente, então, o conteúdo do juízo que, deixando de ser meramente anulatório, seria um conteúdo mais relacional, consubstanciado na decisão final do processo, constituindo o fundamento o delimitando os efeitos cominatórios da sentença de anulação.
Com efeito, pensar-se isso seria redutor. Acolhendo a posição do Autor citado, uma vez que existe um processo de execução da sentença, aceitar que na própria decisão de anulação já está “incorporada” a obrigação da resolução da questão material subjacente, retira qualquer sentido útil àquele processo, sendo a sentença de anulação, então, mais do que isso, uma sentença que reconhece o direito substantivo. Para VIEIRA DE ANDRADE, o fundamento dos chamados efeitos “ultra-constitutivos” encontra-se precisamente na autoridade da sentença, associada ao carácter retroactivo da anulação do acto ilegal – “O dever de pôr a situação de facto de acordo com a situação de direito, reconstruindo a situação sem a ilegalidade, é desencadeado pela sentença, mas decorre de determinações do direito substantivo – não havendo, pois, necessidade de, para justificar o dever de reconstituição, incluir no conteúdo da sentença anulatória a decisão sobre os direitos dos particulares em face da Administração.”
Ao reconhecermos isto, percebemos e justificamos a existência de sentenças meramente anulatórias. É que o processo de execução não se limita a extrair consequências materiais da sentença anterior, acabando por ter um pouco uma dimensão declarativa, uma vez que se destina a conhecer a situação e a concretizar os efeitos condenatórios.
Por fim, tudo isto se confirma com a possibilidade de cumulação da acção de impugnação do acto administrativo e o pedido de condenação à prática do acto devido, ainda que a lei confira alguma autonomia processual ao momento em que se averigua a validade do acto, relativamente àquele em que se concretiza a reconstituição da situação.
Assim, citando novamente VIEIRA DE ANDRADE, “o dever positivo que resulta para a Administração da sentença de mera anulação é, afinal, o dever de reexaminar a situação de facto à luz da lei aplicável e da sentença, e o dever de actuar em termos legais e correctos em face desse exame – com esse alcance dir-se-á que os efeitos «ultra-constitutivos» se resumem afinal numa condenação genérica à resolução administrativa de um caso concreto, condicionada e orientada pelos termos da fundamentação anulatória.” 

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