segunda-feira, 23 de maio de 2011

A delimitação material da jurisdição administrativa

    No art. 212º/3 CRP pode ler-se que “compete aos tribunais administrativos o julgamento das acções e recursos contenciosos que tenham por objecto dirimir os litígios emergentes das relações jurídicas administrativas”. Será então que estamos perante uma reserva material absoluta de jurisdição, querendo isto dizer que os tribunais administrativos apenas poderão julgar questões de direito administrativo e que apenas eles poderão julgar tais questões?
    Quanto à questão de saber se os tribunais administrativos apenas poderão julgar questões de direito administrativo, verificou-se uma evolução doutrinária no sentido negativo. Tendo em conta a generalização da utilização de institutos de direito privado, por parte da Administração, a que assistimos, actualmente, admite-se a atribuição legal aos tribunais administrativos da resolução de litígios referentes à actividade da Administração, ainda que respeitantes a relações de direito privado (como, por exemplo, contratos privados da Administração).
    Quanto ao segundo aspecto, o problema de saber se apenas os tribunais administrativos poderão julgar estas questões, a doutrina dividiu-se. De acordo com GOMES CANOTILHO, resulta da CRP que o legislador não pode atribuir a outros tribunais o julgamento de litígios materialmente administrativos. Por outro lado, para FREITAS DO AMARAL e AROSO DE ALMEIDA, é admissível a remissão de questões jurídicas administrativas para os tribunais comuns, tendo em conta essencialmente as dificuldades da jurisdição administrativa, por falta de meios e insuficiência do número de tribunais.
    Por seu lado, a jurisprudência, nomeadamente do STA e do TC, parece não considerar o 212º/3 um imperativo estrito, mas antes uma regra definidora de um modelo típico, susceptível de adaptações ou de desvios em casos especiais, desde que não fique prejudicado o núcleo caracterizador do modelo. A esta posição adere VIEIRA DE ANDRADE, por considerar que aquando da feitura do preceito, ao criar-se uma “nova” jurisdição administrativa, definiu-se a sua “área de actuação”, sem que com isso se tenha pretendido criar uma reserva material absoluta. Essa definição serve como garantia institucional, da qual deriva para o legislador ordinário a obrigação de respeito o seu núcleo essencial. Naturalmente que quando se queira estabelecer um desvio a essa regra, tal legislação terá de ser elaborada pelo órgão competente que, em princípio, será a Assembleia da República. Nas palavras de VIEIRA DE ANDRADE, “fica proibida a descaracterização ou desfiguração da jurisdição administrativa, enquanto jurisdição própria ou principal nesta matéria, mas não fica proibida a atribuição pontual a outros tribunais do julgamento de questões substancialmente administrativas, admitindo-se a razoabilidade dessas «remissões» orgânico-processuais, muitas delas tradicionais, que podem ter justificações diversas – devendo, por isso, incluir-se na margem de escolha política e, portanto, de liberdade constitutiva própria do poder legislativo, designadamente naquelas situações de fronteira em que há dúvidas de qualificação ou zonas de intersecção entre as matérias administrativas e as restantes.”
    É certo que terá sempre que ser justificado tal desvio, e demonstrada a sua conveniência, sob pena de inconstitucionalidade. Todavia, uma interpretação tão restrita do 212º/3 CRP não parece de sufragar, porquanto poria em causa leis importantes e práticas de longa tradição (nomeadamente em material contra-ordenacional ou de expropriações públicas).
  Seguindo a interpretação da jurisprudência e de VIEIRA DE ANDRADE, os tribunais administrativos surgem, apenas, como os tribunais comuns em matéria administrativa, posição que aliás veio a ser consagrada pela Reforma de 2002, quebrando um pouco a rigidez constitucional do 212º/3.
   

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