terça-feira, 24 de maio de 2011

Despacho Saneador II

Supremo Tribunal Administrativo


Processo n.º 123/Y

Na sequência do aperfeiçoamento da petição inicial pelo A., a convite do tribunal (nos termos do art. 88.º CPTA), cabe proferir despacho saneador das questões pendentes, verificando se foram sanadas as excepções que poderiam obstar ao conhecimento do mérito da causa.
Verificaremos apenas se foram supridas as incorrecções que foram sujeitas a aperfeiçoamento, sendo que se, nos termos do n.º 4 do art. 88.º CPTA, estas não tiverem sido corrigidas, determinarão a absolvição da instância sem possibilidade de substituição da petição inicial.


DESPACHO SANEADOR

I.  Saneamento do Processo
O Tribunal é absoluta e relativamente competente.
Os RR. são parte legítima.
O A. é parte legítima em relação ao pedido de impugnação do acto administrativo de Abril de 2010 que aprovou a redução salarial dos funcionários públicos em 10%, e está devidamente representado.
A coligação é legal.

1.      Da falta de patrocínio judiciário
Sendo que o aperfeiçoamento da petição inicial levou, excepcionalmente, à alteração dos sujeitos demandados, é necessário que os RR. apresentem, no início da audiência, discussão e julgamento, o documento que ateste a concessão do patrocínio judiciário (o art. 79.º, n.º 2, CPC atribui ao juiz o poder de fixar este prazo de apresentação do documento).
A constituição de mandatário judicial é obrigatória nos termos do art. 11.º, n.º 1, CPTA., devendo a apresentação da procuração forense processar-se segundo o disposto no CPC. (art. 79.º, n.º 1 CPTA).

2.      Da ilegitimidade activa
Em relação ao pedido de condenação à prática do acto devido, ou seja, à suspensão da construção do novo aeroporto de Lisboa, no Campo de Tiro de Alcochete, o A. afirma que tem legitimidade com a seguinte fundamentação: “os artigos 68º nº 1 d) e artigo 9º nº 2 do CPTA conferem legitimidade ao autor para pedir a condenação da administração à prática de acto devido, João Infeliz Árasquinha é titular de um interesse difuso pois está em causa a ofensa de valores constitucionalmente protegidos nomeadamente no âmbito da organização económica contidos no artigo 81º nº 1 CRP” (art. 6.º da petição inicial aperfeiçoada).
O tribunal tem sérias dúvidas de que se possa considerar que as incumbências do Estado expressas no art. 81.º da Constituição da República Portuguesa preencham o conceito de “valores constitucionalmente protegidos”, mas não quer, desde já, tomar uma decisão peremptória. Para além disso, reconhece que existem outros valores constitucionalmente protegidos que poderiam ser invocados nesta situação. No entanto, apesar do disposto no art. 88.º, n.º 1, CPTA, que afirma que o juiz deve procurar corrigir as questões que possam obstar ao conhecimento do processo, sanando-as oficiosamente, o “valor constitucionalmente protegido” tem de ser alegado pelas partes.
Assim, será dada, mais uma vez, a oportunidade ao A. de, no início da audiência, convencer o tribunal de que existe, realmente, na Constituição, um valor protegido que é posto em causa na situação controvertida, de acordo com o princípio da cooperação como configurado no art. 266.º, n.º 2, CPC (ex vi do n.º 1 do art. 1.º CPTA).
Sendo que a ilegitimidade do A. obsta ao procedimento do processo (art. 89.º, n.º 1, al. d), CPTA), se este não conseguir conformar a convicção do tribunal, invocando aquilo que é necessário para lhe ser reconhecida legitimidade processual, o R. será absolvido da instância.
Assim, ao abrigo do disposto no art. 266.º, n.º 2, CPC o tribunal convida a parte a fornecer os esclarecimentos necessários para a verificação do preenchimento deste pressuposto processual no início da audiência, discussão e julgamento.

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*
Nos termos do art. 508.º-B CPC, ex vi art. 1.º CPTA, o juiz pode dispensar a realização de audiência preliminar quando, destinando-se esta a fixação da base instrutória, a simplicidade da mesma o justifique (art. 508.º-B, n.º 1, al. a)). Não havendo lugar à realização de audiência preliminar, nos termos do n.º 2 do mesmo artigo, o juiz deve seleccionar a matéria de facto no despacho saneador.
Assim, sendo que a causa não se parece revestir de manifesta dificuldade, dispensa-se a audiência preliminar.
Em aplicação do art. 511.º, existindo matéria de facto controvertida, procede-se à fixação dos factos assentes e da factualidade a provar:

II. Factualidade assente
A)
O Governo português pediu um empréstimo extraordinário, no mês de Abril, de 2010 ao FMI, BCE e Comissão da União Europeia (art. 7.º PI), tendo sido assinado o Acordo “Troikado”, constante do Doc.4, junto com a PI;
B)
O Governo português comprometeu-se perante as entidades referidas em A) a reduzir, se necessário, os ordenados em 10% em todos os empregos públicos (art. 8.º PI);
C)
O Ministro das Finanças emitiu o despacho constante do Doc. 22, a 20 de Maio de 2011, que autoriza a redução salarial de 10% para toda a função pública (art. 11.º PI).
D)
O A. foi contratado pelo Ministério da Economia para exercer a função de economista, em Janeiro de 2000 (arts. 7.º e 12.º PI);
D)
 O A. auferia a quantia de 2.000 euros por mês até Maio de 2011 (art. 13.º PI);
E)
 O A. sofreu uma redução de 10% no ordenado em Maio do mesmo ano passando a auferir 1.800 euros mês (art. 15.º PI);
F)
 As despesas familiares mensais do A. rondam os €2000, nos termos invocados na petição inicial (art. 16.º PI);
G)
 O A. incorreu em juros de mora nas prestações de crédito ao consumidor de 120 euros mês (art. 18.º PI);
H)
O Governo português comprometeu-se a suspender todas as despesas conducentes à realização de investimentos públicos extraordinários (art. 9.º PI);
I)
O Governo aprovou a 15 de Outubro de 2005 a construção de um novo aeroporto no Campo de Tiro de Alcochete (art. 45.º contestação do contra-interessado);
J)
O Governo comprometeu-se, no Acordo “Troikado” de 2011, a suspender a construção do segundo aeroporto de Lisboa (art. 9.º PI);
K)
O seminário Sol publicou uma notícia anunciando a não suspensão da construção no dia 6 de Maio de 2011 (art. 22.º PI);
L)
A 10 de Fevereiro de 2006 foi aberto concurso público para a adjudicação da obra, tenho sido celebrado contrato de empreitada com a “Sóbetão – Construções, SA., nos termos invocados na contestação dos contra-interessados (arts. 57.º a 62.º contestação do contra-interessado);
M)
O contra-interessado realizou os actos enunciados nos arts. 90.º a 94.º da sua contestação.


III. Base instrutória:
Não estão provados os seguintes factos, ainda que não tenham sido contestados, por aplicação do art. 83.º, n.º 4, CPTA:
1.º- Houve ou não suspensão da obra de construção do novo aeroporto de Lisboa (arts. 20.º a 23.º PI)?
2.º- O e-mail apresentado por Ana Rita Chiba, alegadamente de 1 de Maio de 2010, foi, de facto, enviado pelo Ministro das Obras Públicas nos termos descritos na petição inicial (arts. 24.º a 27.º PI)?
3.º- Os e-mails alegadamente trocados entre o contra-interessado e o Ministro das Obras-Públicas são verdadeiros (arts. 67.º e 68.º da contestação do contra-interessado)?
4.º- Houve ou não uma ordem de não suspensão da obra pelo Ministro das Obras-Públicas?
5.º- Falta apenas a conclusão de duas pistas e de um edifício de serviços administrativos na construção do novo aeroporto de Lisboa (art. 63.º contestação do contra-interessado)?
6.º- O contra-interessado não teria realizado as despesas provadas em M) se não tivesse celebrado o contrato de empreitada provado em L)?

Iv. Alterações do A. à petição inicial que não serão aceites:
Tendo em conta o princípio da igualdade entre as partes, e sendo que o aperfeiçoamento da petição inicial se realizou em condições absolutamente excepcionais, os juízes procuraram encontrar uma solução de consenso, ponderando o interesse de todas as partes envolvidas.
Assim sendo, considerou-se que o A. foi longe de mais no aperfeiçoamento da petição inicial, consubstanciando esta, praticamente, uma reformulação da mesma, inaceitável no presente processo.
Declaram-se, assim, rejeitados pelo tribunal, os seguintes artigos da petição inicial aperfeiçoada:
1-      Art. 10.º, no que diz respeito à subsidiariedade de outras medidas em relação à suspensão do aeroporto de Lisboa, por se traduzir numa alteração substancial dos factos que inutilizaria, de forma inaceitável, toda a estratégia de defesa dos RR.
2-      Arts. 32.º a 35.º, por não serem essenciais, nem sequer úteis, para a sanação de qualquer dos pressupostos processuais em causa, sendo apenas um aproveitamento abusivo do convite ao aperfeiçoamento para alterar as razões de direito invocadas;
3-      Arts. 44.º e 46.º, em consequência da rejeição do art. 10.º, por identidade de motivos.

Para além de tudo isto, pede-se ao A. que até às 14h de amanhã volte a apresentar a prova documental, por se encontrarem absolutamente ilegíveis na petição inicial aperfeiçoada.
Notifique.

Lisboa, 24 de Maio de 2011,

Os juízes,
Isabel Montalvão
Joana Fernandes
Mariana Oliveira
Jerónimo Kopke Túlio
Filipa Lemos Caldas

Um olhar sobre a Acção de Condenação da Administração à prática do acto devido

A Acção de Condenação da Administração à prática do acto devido consiste numa modalidade da acção administrativa especial e que foi expressamente prevista no direito português após a revisão do Código de Processo nos Tribunais Administrativos (CPTA) de 2004.

A criação deste tipo de acção é um passo importante na afirmação do Contencioso Administrativo face à ideia que antes se impunha do “administrador-juíz” e da separação de poderes que ditava que os poderes da entidade judicial consistiam apenas na mera anulação de actos administrativos. Esta visão advinha da supremacia do poder Estadual em deferimento dos interesses dos particulares, considerava-se que as acções do estado não poderiam ser directamente postas em causa.

Esta visão está hoje afastada, os Tribunais Administrativos são hoje dotados de plena jurisdição e o interesse dos particulares está assegurado pelo princípio da Igualdade previsto no art. 6º CPTA bem como pela tutela jurisdicional prevista na Constituição nos artigos 212º nº 3 e 268 nº 4.

O passo para a criação desta forma de processo administrativo especial foi dado pela Constituição de 1976, em particular com a Revisão de 1982, que ao afirmar um contencioso administrativo de plena jurisdição abriu as portas para que fosse criado pela Reforma do Contencioso administrativo uma figura que tutelava o interesse dos administrados nas suas relações com a administração, a chamada acção para o reconhecimento de direitos e interesses legalmente protegidos. Esta acção permitia obter um efeito semelhante ao da acção de condenação a prática do acto devido.

Em 1997 a Constituição passa a prever expressamente “a determinação da prática de actos administrativos legalmente devidos” o que despertou opiniões diversas. Uns seguiam o sentido da criação de um novo meio processual condenatório criado directamente pelo legislador constituinte (neste sentido Sévulo Correia), outros consideravam que este meio processual estava dependente do desenvolvimento pelo legislador ordinário (Prof. Vasco Pereira da Silva).

Esta figura da acção de condenação da administração a prática do acto devido nasce em 2004 etem o seu regime contido nos artigos 66º e seguintes CPTA, considera o professor Luis Cabral Moncada que esta nova acção “substitui com todas as vantagens para o recorrente tradicional recurso contencioso contra o acto tácito de indeferimento ou acto silente negativo que tratava como se não existisse para efeitos de contencioso algo que verdadeiramente não existia” além do mais a sentença produzida não era provida de efeitos executivos.

O nº 1 do artigo 66º prevê duas modalidades de acção de condenação da administração à prática do acto devido consoante o pedido formulado, assim, se está em causa um acto administrativo ilegalmente omitido é possível condenar a administração à emissão do acto devido, se no entanto de trata de um acto recusado pode o administrado pedir a condenação da administração à produção do acto favorável.

Relativamente ao objecto do processo é bastante amplo uma vez que tanto pode ser uma omissão ilegal de um acto administrativo como uma decisão desfavorável por parte da administração, na opinião do Prof. Vasco Pereira da Silva o pedido é valorizado em detrimento da causa de pedir e que o mesmo nunca é, na realidade, o acto administrativo mas o direito do administrado a um determinado comportamento da Administração, o seu interesse próprio ou direito subjectivo (art. 66 nº 2) Nesta acção o juiz não se concentra na existência de facto de um acto mas sim no acto que a administração deve praticar.

É importante ter em conta que muitas das decisões da Administração são tomadas tendo em conta a sua discricionariedade de acção e como tal as sentenças têm de determinar a amplitude da vinculação legal da administração bem como da discricionariedade tal como vem referido no artigo 71º nº 2 CPTA.
Neste tipo de decisões o tribunal tem de tem de ter em mente o Principio da Separação de Poderes (artigo 2º CRP) para não substituir na Administração na tomada de uma decisão que é, afinal, discricionária. Assim o poder judicial deve apreciar as vinculações legais da Administração naquela situação concreta bem como os critérios e parâmetros das escolhas e indicar uma ou mais decisões que considera estar dentro da amplitude legal de actuação da administração.

Por fim uma referência geral ao regime da acção de condenação da administração a prática do acto devido:

Para se reunirem os pressupostos do art. 67º CPTA é necessário que haja, da parte da administração, uma das situações previstas no nº 1.
Quanto à legitimidade do interessado vem regulada no artigo 68º CPTA ou seja tem legitimidade activa quem tenha a titularidade de direitos ou interesses legalmente protegidos dirigidos à emissão desse acto (alínea a)).

Podem também propor acção as pessoas colectivas, públicas ou privadas, em relação aos direitos e interesses que lhes cumpra defender (alínea b)), o Ministério Público, quando o dever de praticar o acto resulte directamente da lei e esteja em causa a ofensa de direitos fundamentais, de um interesse público especialmente relevante ou de qualquer dos valores e bens referidos no n.º 2 do artigo 9 (alínea c)) e as demais pessoas e entidades mencionadas no n.º 2 do artigo 9.º (alínea d)). Esta alínea permite que um particular possa demandar a administração com base não só num interesse directo mas também se for titular de um interesse difuso.

Relativamente à tempestividade o art. 69º CPTA, dita de 1 ano caso se trate de um acto ilegalmente omitido e 3 meses se estivermos perante um acto de conteúdo negativo.

segunda-feira, 23 de maio de 2011

“Quem cala consente!” – notas acerca do meio processual adequado para reagir contra um deferimento tácito


Num post anterior tratámos já a temática do deferimento tácito, mas sob a perspectiva do interesse processual do destinatário do acto em exigir que a Administração pratique o acto expresso. Na altura deixámos, no entanto, no ar, uma segunda pergunta:
“2- Se este interesse processual existe, qual o meio adequado para reagir contra este acto de deferimento tácito? Acção administrativa especial ou de condenação à prática de acto devido (visto que se trata de um silêncio da Administração Pública)?”
Assim sendo, este post dedicar-se-á à segunda questão, que está directamente ligada à primeira, mas que, diga-se, é muito mais curta e simples de resolver. Recomenda-se, no entanto, que se leia o post anterior previamente, sob pena de não se compreender alguns raciocínios lógicos que partirão do que aí foi dito.

II.     Do meio processual adequado para reagir a um acto tacitamente deferido
A história dos actos tácitos é indissociável da sua impugnação contenciosa. Até 2004 a lei permitia apenas que se impugnassem actos administrativos, não havendo meio processual previsto para as situações de omissão legislativa. Assim, o indeferimento tácito era uma forma de o particular ficar munido de um acto de pudesse impugnar, de modo a obter a pronúncia da Administração acerca do pedido que havia formulado[1]
No entanto, desde 2004 que o legislador prevê no CPTA, com os arts. 46.º/2/b) e 66.º a 71.º, a possibilidade de a Administração ser condenada, por um tribunal, à prática de acto devido. Deste modo, já não há necessidade de impugnar o acto tácito negativo, e é até errado fazê-lo (arts. 66.º/2 e 51.º/4 CPTA, por maioria de razão). Por este motivo, a doutrina tem defendido que o 109.º e 175.º/3 CPA se encontram, desde então, revogados[2]. Note-se, no entanto, que a posição de Mário Aroso de Almeida é um pouco diferente, na medida em que sustenta que foi apenas revogado o art. 109.º/1 CPA, mantendo-se em vigor os n.ºs 2 e 3[3].
No entanto, como refere Marcelo Rebelo de Sousa, “o alcance substantivo do deferimento tácito tornou-o aparentemente imune à incidência da reforma do contencioso administrativo. Assim, o deferimento tácito é a única modalidade de acto tácito actualmente existente no direito administrativo português”[4].
Assim, coloca-se a questão de saber qual é o meio processual adequado para recorrer do deferimento tácito, quando o particular tenha interesse nisso (conforme o que expusemos no nosso post anterior).
Pareceria que, mais uma vez, a resposta a esta pergunta dependeria da concepção que se tivesse acerca da natureza do deferimento tácito. Quem o considerasse como um verdadeiro acto administrativo ou como uma ficção de acto administrativo, então deveria defender que a reacção ao acto seria feita em sede de acção administrativa especial de impugnação de actos administrativos, se o deferimento não lhe fosse totalmente satisfatório, ou uma mera acção administrativa comum para o reconhecimento de direitos, para lhe dar segurança jurídica por confirmação de que já havia acto tácito. Já quem entendesse que se trata de uma omissão juridicamente relevante, deveria defender a utilização de uma acção administrativa especial para condenação à prática de acto devido.
No entanto, concluímos no post anterior que há motivos para que o particular pretenda que a Administração pratique expressamente o seu acto. Se, perante uma dessas situações, o particular recorresse à solução dada pela primeira tese, somos obrigados a concluir que, este não veria a sua pretensão satisfeita: utilizando a acção administrativa especial para a impugnação de actos administrativos, neste caso um acto tácito, o particular obtém somente a impugnação do acto. Mas aí ficaria numa situação de não decisão, o que seria ainda pior do que a precariedade do deferimento tácito!
Assim, todos os autores independentemente da natureza jurídica que reconheçam ao acto tácito, defendem que a acção correcta será a acção administrativa especial para a condenação da Administração à prática do acto devido. Assim, por exemplo, Mário Aroso de Almeida[5] e, segundo parece, Vasco Pereira da Silva[6], defendem a visão do acto tácito como ficção de acto administrativo, mas consideram que o meio processual adequado é a condenação à prática do acto devido.
Importa, assim, compreender se esta posição encontra sustento na letra da lei. Como explica Mário Aroso de Almeida, o Código tem o cuidado de evitar utilizar, em qualquer dos seus preceitos, a palavra silêncio a este propósito (cfr. arts. 69.º, n.º 1, e 79.º, n.º 5) e quando fala de indeferimentos (por exemplo, nos arts. 69.º, n.º 2, ou 79.º, n.º 4), só se refere a verdadeiros actos administrativos (actos expressos, portanto) e nunca a situações de pura inércia ou omissão, em que não há qualquer indeferimento”[7].
 Assim sendo, referindo-se os arts. 66.º/1 e 67.º/1/a) apenas a omissões de actos administrativos, então também integram o conceito de deferimento tácito, devendo ser este o meio processual utilizado pelo particular que se encontre numa das situações de que falámos do post anterior.
Na sequência do que aí dissemos, recordamos que Vasco Pereira da Silva parece pronunciar-se no mesmo sentido, afirma condenação à prática de acto devido numa situação de acto tácito só é possível em duas situações: na hipótese de o acto de deferimento tácito “não corresponder integralmente às pretensões do particular, pelo que, nessa medida, pode ser considerado como parcialmente desfavorável, o que permite “abrir a porta” a pedidos de condenação”, e quando numa relação jurídica multilateral o acto tácito for “favorável a em relação a um ou alguns dos sujeitos, mas não no que respeita aos demais, os quais se vêm confrontados com (uma omissão administrativa geradora de) efeitos desfavoráveis”[8]. Embora reconheçamos que este raciocínio faz todo o sentido, preferimos não limitar o recurso aos tribunais, sendo que preferimos dizer, a título mais geral, que o particular apenas o poderá fazer quando tenha interesse processual nisso (o que embora, à partida, se limite às duas situações discriminadas, poderão, eventualmente ir além delas),
Assim, concluímos que o meio indicado para um particular reagir a um acto tácito, pedindo que a Administração pratique o acto expresso a que estava obrigada, é a acção administrativa especial de condenação à prática de acto devido.
Gostaríamos apenas de fazer uma ressalva no sentido de nos parecer que também aqui se nota que a tese de Marcelo Rebelo de Sousa e de André Salgado de Matos de que o acto tácito não é uma ficção de acto, mas sim uma omissão juridicamente relevante, é mais correcta. Na verdade, se contenciosamente só serve os propósitos do particular a utilização de uma acção que se destina às omissões, então isso significa que, pela sua natureza, o acto tácito é uma omissão.
Parece-nos, assim, que o contencioso administrativo dá uma contribuição valiosa e definitiva para a discussão em torno da natureza do acto tácito.
 
 
Bibliografia consultada:
Almeida, Mário Aroso de, O Novo Regime do Processo nos Tribunais Administrativos, 4.ª ed. , Almedina, 2007
Amaral, Diogo Freitas do, Curso de Direito Administrativo, Vol. II, 8.ª reimpressão da edição de 2001, Almedina, 2008
Andrade, José Carlos Vieira de, Justiça Administrativa (Lições), 9.ª ed., Almedina, 2007
Caetano, Marcello, Manual de Direito Administrativo, Vol I., 10.ª ed., AAFDL, 1986
Otero, Paulo, Legalidade e Administração Pública – O Sentido d Vinculação Administrativa à Juridicidade, Almedina, 2007
Pereira, André Gonçalves, Erro e ilegalidade no acto administrativo, Edições Atica, 1962
Silva, Vasco Pereira da, O Contencioso Administrativo no Divã da Psicanálise – Ensaio sobre as acções no novo processo administrativo, 2.ª ed., Almedina, 2009
Silveira, João Tiago, O Deferimento Tácito - Esboço do Regime Jurídico do Acto Tácito Positivo na Sequência do Pedido do Particular à luz da recente reforma do Contencioso Administrativo, Coimbra Editora, 2004.
Sousa, Marcelo Rebelo de; e André Salgado de Matos, Direito Administrativo Geral, Tomo III, 1.ª ed., Dom Quixote, 2007
 


[1] Acerca da História do instituto v. Sousa, Marcelo Rebelo de; e André Salgado de Matos, Direito Administrativo Geral, Tomo III, 1.ª ed., Dom Quixote, 2007, pp. 389 ss.; Amaral, Diogo Freitas do, Curso de Direito Administrativo, Vol. II, 8.ª reimpressão da edição de 2001, pp. 326 ss. Almedina, 2008, pp. 326 ss.; e Otero, Paulo, Legalidade e Administração Pública – O Sentido d Vinculação Administrativa à Juridicidade, Almedina, 2007, p. 1005.
[2] Cfr. Sousa, Marcelo Rebelo de; e André Salgado de Matos, Direito…, op. cit., p. 390; Silva, Vasco Pereira da, O Contencioso Administrativo no Divã da Psicanálise – Ensaio sobre as acções no novo processo administrativo, 2.ª ed., Almedina, 2009, p. 400; e Almeida, Mário Aroso de, O Novo Regime do Processo nos Tribunais Administrativos, 4.ª ed. , Almedina, 2007
[3] V. Almeida, Mário Aroso de, O Novo…, op. cit., pp. 205 ss.
[4] Cfr. Sousa, Marcelo Rebelo de; e André Salgado de Matos, Direito…, op. cit., p. 390.
[5] V. Almeida, Mário Aroso de, O Novo…, op. cit., p. 207.
[6] V. Silva, Vasco Pereira da, O Contencioso…, op. cit., p. 400.
[7] Cfr. Almeida, Mário Aroso de, O Novo…, op. cit., p. 207.
[8] Cfr. Silva, Vasco Pereira da, O Contencioso…, op. cit., p. 400.

Os efeitos das sentenças de anulação de actos administrativos, os seus actos consequentes e os limites subjectivos das sentenças administrativas

Artigo 173.º
Dever de executar
1 - Sem prejuízo do eventual poder de praticar novo acto
administrativo, no respeito pelos limites ditados pela autoridade do caso
julgado, a anulação de um acto administrativo constitui a Administração no
dever de reconstituir a situação que existiria se o acto anulado não tivesse
sido praticado, bem como de dar cumprimento aos deveres que não tenha
cumprido com fundamento no acto entretanto anulado, por referência à
situação jurídica e de facto existente no momento em que deveria ter
actuado.
2 - Para efeitos do disposto no número anterior, a Administração pode
ficar constituída no dever de praticar actos dotados de eficácia retroactiva
que não envolvam a imposição de deveres, a aplicação de sanções ou a
restrição de direitos ou interesses legalmente protegidos, bem como no
dever de remover, reformar ou substituir actos jurídicos e alterar situações
de facto que possam ter surgido na pendência do processo e cuja
manutenção seja incompatível com a execução da sentença de anulação.
3 - Os beneficiários de actos consequentes praticados há mais de um
ano que desconheciam sem culpa a precariedade da sua situação têm
direito a ser indemnizados pelos danos que sofram em consequência da
anulação, mas a sua situação jurídica não pode ser posta em causa se esses
danos forem de difícil ou impossível reparação e for manifesta a
desproporção existente entre o seu interesse na manutenção da situação e
o interesse na execução da sentença anulatória.
4 - Quando à reintegração ou recolocação de um funcionário que tenha
obtido a anulação de um acto administrativo se oponha a existência de
terceiros interessados na manutenção de situações incompatíveis,
constituídas em seu favor por acto administrativo praticado há mais de um
ano, o funcionário que obteve a anulação tem direito a ser provido em lugar
de categoria igual ou equivalente àquela em que deveria ser colocado, ou,
não sendo isso possível, à primeira vaga que venha a surgir na categoria
correspondente, exercendo transitoriamente funções fora do quadro até à
integração neste.
------------------------------------- // -------------------------------------------------
Efeitos Objectivos
Ao estarmos perante uma sentença de provimento do pedido de anulação, o seu efeito directo é o efeito constitutivo da mesma que não é mais do que a invalidação do acto impugnado.
Foi entendido durante muito tempo  que era este o único efeito da sentença anulatória; no entanto, esse efeito provou ser insuficiente, na maioria das vezes, para tutelar os interesses do particular e a reposição da legalidade.



Assim sendo, o prof. Freitas do Amaral formulou um critério que reconhecia dois outros efeitos[1]:
- um efeito reconstitutivo, que obrigava a Administração a executar a sentença de modo a que se reconstituísse a situação  que teria existido caso não tivesse sido praticado o acto ilegal[2];
- um efeito conformativo, que proíbia a Administração de praticar um acto idêntico com os mesmos vícios individualizados e condenados pelo juíz administrativo, sob pena de ofensa do caso julgado e consequente nulidade, por força do art.133/2/h) CPA.
Foi no âmbito desta linha de raciocínio que se consagrou o actual art.173/1 CPTA que é complementado com a consagração do princípio da execução efectiva no art.173/2 CPTA.

Concluindo, ao estarmos perante uma sentença de anulação de acto administrativo, estamos perante três efeitos:
Efeito constitutivo + Efeito reconstitutivo + Efeito conformativo
O que fazer, então, a respeito de actos realizados ao abrigo de um acto administrativo entretanto anulado?
Tradicionalmente, a doutrina de Marcello Caetano considerava que qualquer acto consequente de um acto anulado seria nulo e a jurisprudência tendia a seguir tal entendimento.
Actualmente, no entanto, o CPA elenca entre os actos nulos do seu art.133 os actos consequentes de actos anteriormente anulados, ressalvando a hipótese de existirem contra-interesados que tenham interesse legítimo na manutenção do acto consequente.
Também é exigida, para tal situação, uma ponderação dos interesses em causa. [3]
Na interpretação do prof. Vieira de Andrade, este artigo deve entender-se da seguinte forma[4]:
- são nulos apenas os actos consequentes cuja manutenção seja incompatível com a reconstituição da situação hipotética exigida pela anulação[5];
- mesmo nos casos em que tal razão se preencha, deve permitir-se que estes se mantenha, caso haja interesses legítimos por parte de contra-interessados.
O art.173/3 CPTA vem ainda acrescentar: “Os beneficiários de actos consequentes praticados há mais de um ano que desconheciam sem culpa a precariedade da sua situação têm direito a ser indemnizados pelos danos que sofram em consequência da anulação, mas a sua situação jurídica não pode ser posta em causa se esses danos forem de difícil ou impossível reparação e for manifesta a desproporção existente entre o seu interesse na manutenção da situação e o interesse na execução da sentença anulatória”.

O art.173/4 CPTA trata do caso concreto da reintegração de funcionários.

Efeitos Subjectivos

Neste âmbito, o que importa discutir  é o seguinte: poderão algumas sentenças administrativas ter eficácia erga omnes?

É ponto assente que a maioria das sentenças terão, obviamente, eficácia inter partes.

Existem, no entanto, excepções a esta regra geral:

- Sentenças de declaração de ilegalidade de normas, no caso de impugnação abstracta, têm força obrigatória geral e, consequentemente, eficácia erga omnes;

- Sentenças nas acções populares, devido à própria natureza desta forma de processo, também têm eficácia erga omnes.

E no caso de sentenças de impugnação de actos administrativos? [6]

- Em relação aos efeitos desfavoráveis da sentença, conclui-se por uma eficácia inter partes;

- Em relação aos efeitos favoráveis da sentença, decidiu-se também pela eficácia inter partes, sem se prejudicar o recurso à extensão desses efeitos, nos termos do art.161 CPTA


[1] Amaral, Freitas do, A execução de sentenças dos tribunais administrativos, 1997
[2] Princípio da reconstituição da situação hipotética actual.
[3] V. Ac. STA 10/11/98
[4] Andrade, José Carlos Vieira de, A Justiça Administrativa (Lições), 2009
[5] V. Ac. STA 28/1/99
[6] Andrade, José Carlos Vieira de, A Justiça Administrativa (Lições), 2009