segunda-feira, 23 de maio de 2011

Despacho de Aperfeiçoamento


Tribunal Administrativo de Círculo de Lisboa


Processo n.º 123/Y

Nos termos do art. 87.º CPTA, cabe ao tribunal proferir despacho de aperfeiçoamento sempre que a correcção oficiosa das deficiências ou irregularidades das peças processuais não seja possível.
A não reformulação das questões infra indicadas terá como consequência a absolvição do réu da instância.

Despacho de aperfeiçoamento

1.      Da ilegitimidade activa
O A. intentou acção administrativa especial de impugnação de acto administrativo (arts.
50.º ss. CPTA), sendo que tem legitimidade para propor esta acção quem alegue ser titular de um interesse directo e pessoal, designadamente por ter sido lesado pelo acto nos seus direitos ou interesses legalmente protegidos (art. 55.º, n.º 1, al. a), e 9.º, n.º 1, CPTA).
O preenchimento deste requisito não exige a verificação da efectiva titularidade da
situação jurídica invocada pelo A., bastando a alegação dessa titularidade (cf. Acórdão do STA de 3.Março.2004, Proc. n.º 1240/02.).
Acontece que o A., quanto ao pedido de impugnação do acto de aprovação da construção do novo aeroporto de Lisboa, não alegou interesse pessoal, visto que não invocou a utilidade pessoal que pretende obter com a impugnação desse acto, nem invocou que tinha um interesse actual e efectivo em pedir a anulação ou a declaração de nulidade do acto que é impugnado, ou seja, não alegou interesse directo.
Os arts. 35.º e 36.º da petição inicial referem-se apenas à legitimidade para impugnar
o acto administrativo que aprovou a redução salarial dos funcionários públicos em 10%
e não o acto que aprovou a construção do aeroporto de Lisboa, ou seja, não se refere em nenhum momento ao pedido 1.
Assim, não se preenchendo os requisitos do art. 55.º, n.º 1, al. a), CPTA, tenderíamos a considerar que o A. é parte ilegítima. No entanto, o art. 88.º, n.º 1, CPTA afirma que o juiz deve procurar corrigir as questões que possam obstar ao conhecimento do processo, sanando-as oficiosamente. Deste modo, poder-se-ia equacionar a legitimidade do A. para defesa de interesses difusos, agora nos termos dos arts. 55.º, n.º 1, al. f) e 9.º, n.º 2, CPTA.
O art. 9.º, n.º 2, CPTA reconhece ao Ministério Público, às autarquias locais, às
associações e fundações defensoras dos interesses em causa e, em geral, a qualquer
pessoa singular, enquanto membro da comunidade, o direito de lançar mão de todo e
qualquer meio processual, principal ou cautelar, para defesa dos valores e bens
constitucionalmente protegidos. No entanto, o A. também não invoca, a este respeito, qualquer interesse constitucionalmente protegido.
A ilegitimidade do A. obsta ao procedimento do processo (art. 89.º, n.º 1, al. d), CPTA), pelo que, se o A. não aperfeiçoar a sua petição inicial, invocando aquilo que é necessário para lhe ser reconhecida legitimidade processual, o R. será absolvido da instância. Assim, cumprindo o disposto no art. 88.º, n.º 2, CPTA o A. é convidado a suprir a sua ilegitimidade, para que o processo possa prosseguir.

2.      Da ilegitimidade passiva
O R. invocou, nos arts. 13.º a 18.º da sua contestação, a ilegitimidade do R. Primeiro Ministro José das Socas quanto ao pedido de impugnação do acto de redução dos salários, alegando que o acto em causa foi realizado pelo Governo, órgão colegial que integra a Administração do Estado. Não parece que este argumento proceda, mas também não parece que o Primeiro-Ministro seja parte legítima. 
Nas acções que têm por objecto um acto praticado pela pessoa colectiva Estado, a parte demandada deve ser o ministério a que seja imputável esse acto, nos termos do art. 10.º, n.º 2, CPTA).
O Governo é um órgão complexo (cfr. Freitas do Amaral, Curso de Direito Aministrativo, vol I, 3.ª ed., p. 248), sendo que a sua competência pode ser exercida de forma colegial e também de forma individual, pelos vários membros do Governo (entre eles o Primeiro-Ministro e cada um dos Ministros). Em regra, é por meio destes órgãos, individualmente considerados, que o Governo exerce as suas atribuições administrativas, sendo que a competência só é colegial nos casos expressamente previstos na lei. Acontece que o pagamento de salários (visto que o acto impugnado é o pagamento) não é um desses casos. Sendo que o empregador do A. é o Ministério da Economia, e que foi este que praticou o acto, deveria ter sido demandado o Ministro da Economia.
Se o A. tivesse proposto a acção contra o Governo, seria possível, nos termos do art. 10.º, n.º4, considera-la regularmente proposta. No entanto, A. demandou a pessoa do titular do cargo de Primeiro-Ministro, José Das Socas, não se podendo, neste caso, considerar que a acção foi proposta contra o Ministro que seria parte legítima (10º/4 C.P.T.A. e 78º/3 a contrario).
A falta de legitimidade processual de demandado obsta ao prosseguimento do processo (89º/1 al. d)), mas, pelo princípio do aproveitamento dos actos processuais, e tendo em conta as circunstâncias excepcionais deste processo, é dada ao A. a possibilidade de sanar a falta de legitimidade através do aperfeiçoamento do articulado, em termos análogos aos do art. 88º/2 CPTA. De qualquer das formas, o Primeiro-Ministro José das Socas será absolvido da instância.

3.      Da ineptidão da petição inicial
A causa de pedir no processo é “constituída pelos factos concretos e pelas razões de Direito em que se baseia a pretensão e há-de ser adequada a fundamentar cada acção em concreto, variando naturalmente em função dos pedidos” (cfr. Vieira de Andrade, Justiça Administrativa (Lições), 9.ª ed., Almedina, 2007, p. 282). À semelhança do que acontece no processo civil, aplica-se à petição inicial o art. 193.º CPC (ex vi do art. 1.º CPTA), sendo que esta será inepta quando a causa de pedir seja ininteligível.
A jurisprudência e a doutrina têm vindo a realçar a diferença entre a falta ou ininteligibilidade da causa de pedir e a mera insuficiência da mesma, sendo que as primeiras resultam na ineptidão da petição inicial e consequente nulidade do processo, e a segunda tem como consequência o convite a suprir a insuficiência, deficiência ou imprecisão (arts. 266.º, n.º 2 e 508.º, n.º 2 CPC). “Por isso mesmo, a falta ou deficiência das razões de direito em que o autor apoia a sua conclusão, ou as suas conclusões, não compromete a aptidão da petição inicial, não invalida esta, antes constitui uma irregularidade susceptível de sanação mediante convite endereçado à parte pelo julgador” (Cfr. Ac. TCA/N, Proc. 00307/05.0BEBRG, de 06/12/2008 e Alberto dos Reis, Comentário ao Código de Processo Civil, Coimbra Editora, vol. II, pp. 369 e 370).
Este convite dirigido ao autor para aperfeiçoar o seu articulado, colmatando insuficiências da causa de pedir – existente e inteligível – ou concretizando as razões de direito que entende justificarem o seu pedido, é imposto pelos princípios do aproveitamento dos actos processuais, pro actione e in dubio pro habilitate instantiae, que resultam dos arts. 508.º CPC e 7.º CPTA, e que impõem que se privilegie a interpretação mais favorável ao acesso à justiça e à emissão de pronúncia sobre o mérito das pretensões formuladas. De tal forma que a possibilidade de convidar à correcção da petição não constitui uma mera faculdade atribuída ao julgador, mas sim um poder-dever que lhe é conferido sendo que, “a solução contrária constituiria uma restrição excessiva e desproporcional do princípio da plenitude da garantia judiciária” (cfr. Ac. TCA/N, Proc. 98/04 e 299/04, de 20/1/2005 e de 6/4/2006, respectivamente).
No mesmo sentido, o Tribunal da Relação do Porto explica que “a ineptidão da petição inicial por ininteligibilidade da causa petendi apenas sobrevém quando os factos sejam expostos de modo tal, que seja impossível, ou, pelo menos, razoavelmente inexigível, determinar, qual o núcleo e sentido essencial da causa de pedir. (…) Se, não obstante a confusão, obscuridade imperfeição, equivocidade, incorrecção ou deficiência, na exposição factual, tal determinação -vg. pela própria posição assumida pelo réu - for possível, não deve o juiz declarar a ineptidão, mas antes convidar o autor a suprir e corrigir os vícios e as imperfeições detectadas, nos termos dos arts. 265°, 266° e 508° do CPC” (Ac. TRP, Proc. 4541/06.8TBVNG.P1, de 16/06/2009).
Neste sentido, note-se que na petição inicial o A. deduz dois pedidos distintos. O segundo pedido diz respeito à impugnação do acto que aprova a construção do novo aeroporto de Lisboa, no Campo de Tiro de Alcochete, sendo que este está correctamente formulado e é perfeitamente inteligível. Mais difícil é compreender em que razões de facto e direito baseia o A. a sua pretensão (art. 78.º/2/g) CPTA).
Quanto à matéria de facto, note-se que os arts. 20.º a 25.º da petição inicial se referem unicamente à suspensão do aeroporto e não à sua aprovação, sendo que não é invocado um único facto que refira sequer em que data foi praticado ou acto ou por quem (o art. 2.º da petição inicial refere-se ao “acto ilegal da administração que aprova a construção do novo aeroporto de Lisboa”, mas, como é sabido, o art. 78.º/2/e) CPTA exige que se identifique o órgão que praticou ou devia ter praticado  o acto, ou a pessoa colectiva de direito público ou o ministério a que esse órgão pertence), e não é juntado documento comprovativo da prática do acto (como exige o art. 79.º, n.º 2, CPTA). Assim, não só não se compreende porque é que, querendo o A. impugnar o acto de aprovação da construção, todos os factos se referem à sua suspensão, como nem sequer são cumpridas as alíneas d) e e) do art. 78.º, n.º 2 CPTA, que obrigam à identificação do acto que se pretende impugnar e do seu autor. Questionamos se terá havido um erro na identificação do acto a impugnar.
Quanto ao direito, invoca o contra-interessado no art. 32.º da sua contestação, que os fundamentos de direito alegados nos arts. 28.º a 34.º da petição inicial não “podem servir de base, de modo algum, ao pedido de impugnação do acto administrativo que aprovou a construção do novo aeroporto”. Esta é uma daquelas situações difíceis, destacadas por Alberto dos Reis (op. cit.) em que se torna “difícil distinguir a deficiência que envolve ineptidão da que deve importar improcedência do pedido. Há uma zona fronteiriça, cuja linha divisória nem sempre se descobre com precisão. São os casos em que o autor faz, na petição, afirmações mais ou menos vagas e abstractas, que umas vezes descambam na ineptidão por omissão da causa de pedir, outras na improcedência por falta de material de facto sobre que haja de assentar o reconhecimento do direito.”. Assim, não se compreende exactamente se os arts. 28.º a 34.º da petição inicial se destinam também a fundamentar o pedido de impugnação da aprovação da construção do novo aeroporto de Lisboa, ou se há falta de causa de pedir. Será que o art. 37.º da petição inicial pretende fazer estender todos os argumentos de direito que foram feitos em relação ao primeiro pedido ao segundo? Não é claro.
É difícil para o tribunal compreender se constam da causa de pedir os factos concretos e as razões de direito em que o A. entende fundar o seu direito à impugnação do acto, e se a sua procedência em sede de decisão de mérito deverá ser averiguada posteriormente, ou se não é exactamente isto que o A. quer alegar, havendo uma deficiente formulação da causa de pedir, que deve ser reformulada. Note-se, por exemplo, que se invoca a ilegalidade do acto, mas que em nenhum momento é referida qual a norma legal que este viola.
Assim, se a causa de pedir for somente a condição de grave carência económica do A., a causa de pedir é inteligível. Se não o for, o A. deve corrigir o erro, tornando claros os fundamentos da sua pretensão.
Do anteriormente exposto resulta que é tão possível que o A. tenha apenas formulado a causa de pedir de forma obscura, confusa e imperfeita, como que esta, de facto, não exista. Optamos, assim, por convidar o autor a suprir e corrigir os vícios detectados, realçando que, caso não o faça, estes são graves o suficiente para conduzirem a uma absolvição da instância.
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Atento ao acima exposto, profere-se, ao abrigo do art. 88.º, n.º 2, CPTA, despacho de aperfeiçoamento destinado a providenciar o suprimento destas excepções dilatórias.
Tendo em conta as especiais circunstâncias em que o presente processo decorre, o A. não terá o prazo de 10 dias para corrigir a petição inicial, como teria ao abrigo do n.º 2 do art. 88.º CPTA. Deverá, assim, suprir as excepções até 12h antes do início da audiência, designada para o próximo dia 22.05.2011, pelas 16h, sendo que se começará precisamente por verificar que os pressupostos processuais em falta já estão preenchidos, sob pena de imediata absolvição do R. da instância. Deste modo, o R. e o contra-interessado terão ainda 12h para prepararem, caso considerem necessário, o contraditório a que têm direito nos termos da lei processual e da Constituição.
Notifique.

Lisboa, 22 de Maio de 2011,

Os juízes,
Isabel Montalvão
Joana Fernandes
Mariana Oliveira
Jerónimo Kopke Túlio
Filipa Lemos Caldas

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