segunda-feira, 23 de maio de 2011

“Quem cala consente!” – notas acerca do meio processual adequado para reagir contra um deferimento tácito


Num post anterior tratámos já a temática do deferimento tácito, mas sob a perspectiva do interesse processual do destinatário do acto em exigir que a Administração pratique o acto expresso. Na altura deixámos, no entanto, no ar, uma segunda pergunta:
“2- Se este interesse processual existe, qual o meio adequado para reagir contra este acto de deferimento tácito? Acção administrativa especial ou de condenação à prática de acto devido (visto que se trata de um silêncio da Administração Pública)?”
Assim sendo, este post dedicar-se-á à segunda questão, que está directamente ligada à primeira, mas que, diga-se, é muito mais curta e simples de resolver. Recomenda-se, no entanto, que se leia o post anterior previamente, sob pena de não se compreender alguns raciocínios lógicos que partirão do que aí foi dito.

II.     Do meio processual adequado para reagir a um acto tacitamente deferido
A história dos actos tácitos é indissociável da sua impugnação contenciosa. Até 2004 a lei permitia apenas que se impugnassem actos administrativos, não havendo meio processual previsto para as situações de omissão legislativa. Assim, o indeferimento tácito era uma forma de o particular ficar munido de um acto de pudesse impugnar, de modo a obter a pronúncia da Administração acerca do pedido que havia formulado[1]
No entanto, desde 2004 que o legislador prevê no CPTA, com os arts. 46.º/2/b) e 66.º a 71.º, a possibilidade de a Administração ser condenada, por um tribunal, à prática de acto devido. Deste modo, já não há necessidade de impugnar o acto tácito negativo, e é até errado fazê-lo (arts. 66.º/2 e 51.º/4 CPTA, por maioria de razão). Por este motivo, a doutrina tem defendido que o 109.º e 175.º/3 CPA se encontram, desde então, revogados[2]. Note-se, no entanto, que a posição de Mário Aroso de Almeida é um pouco diferente, na medida em que sustenta que foi apenas revogado o art. 109.º/1 CPA, mantendo-se em vigor os n.ºs 2 e 3[3].
No entanto, como refere Marcelo Rebelo de Sousa, “o alcance substantivo do deferimento tácito tornou-o aparentemente imune à incidência da reforma do contencioso administrativo. Assim, o deferimento tácito é a única modalidade de acto tácito actualmente existente no direito administrativo português”[4].
Assim, coloca-se a questão de saber qual é o meio processual adequado para recorrer do deferimento tácito, quando o particular tenha interesse nisso (conforme o que expusemos no nosso post anterior).
Pareceria que, mais uma vez, a resposta a esta pergunta dependeria da concepção que se tivesse acerca da natureza do deferimento tácito. Quem o considerasse como um verdadeiro acto administrativo ou como uma ficção de acto administrativo, então deveria defender que a reacção ao acto seria feita em sede de acção administrativa especial de impugnação de actos administrativos, se o deferimento não lhe fosse totalmente satisfatório, ou uma mera acção administrativa comum para o reconhecimento de direitos, para lhe dar segurança jurídica por confirmação de que já havia acto tácito. Já quem entendesse que se trata de uma omissão juridicamente relevante, deveria defender a utilização de uma acção administrativa especial para condenação à prática de acto devido.
No entanto, concluímos no post anterior que há motivos para que o particular pretenda que a Administração pratique expressamente o seu acto. Se, perante uma dessas situações, o particular recorresse à solução dada pela primeira tese, somos obrigados a concluir que, este não veria a sua pretensão satisfeita: utilizando a acção administrativa especial para a impugnação de actos administrativos, neste caso um acto tácito, o particular obtém somente a impugnação do acto. Mas aí ficaria numa situação de não decisão, o que seria ainda pior do que a precariedade do deferimento tácito!
Assim, todos os autores independentemente da natureza jurídica que reconheçam ao acto tácito, defendem que a acção correcta será a acção administrativa especial para a condenação da Administração à prática do acto devido. Assim, por exemplo, Mário Aroso de Almeida[5] e, segundo parece, Vasco Pereira da Silva[6], defendem a visão do acto tácito como ficção de acto administrativo, mas consideram que o meio processual adequado é a condenação à prática do acto devido.
Importa, assim, compreender se esta posição encontra sustento na letra da lei. Como explica Mário Aroso de Almeida, o Código tem o cuidado de evitar utilizar, em qualquer dos seus preceitos, a palavra silêncio a este propósito (cfr. arts. 69.º, n.º 1, e 79.º, n.º 5) e quando fala de indeferimentos (por exemplo, nos arts. 69.º, n.º 2, ou 79.º, n.º 4), só se refere a verdadeiros actos administrativos (actos expressos, portanto) e nunca a situações de pura inércia ou omissão, em que não há qualquer indeferimento”[7].
 Assim sendo, referindo-se os arts. 66.º/1 e 67.º/1/a) apenas a omissões de actos administrativos, então também integram o conceito de deferimento tácito, devendo ser este o meio processual utilizado pelo particular que se encontre numa das situações de que falámos do post anterior.
Na sequência do que aí dissemos, recordamos que Vasco Pereira da Silva parece pronunciar-se no mesmo sentido, afirma condenação à prática de acto devido numa situação de acto tácito só é possível em duas situações: na hipótese de o acto de deferimento tácito “não corresponder integralmente às pretensões do particular, pelo que, nessa medida, pode ser considerado como parcialmente desfavorável, o que permite “abrir a porta” a pedidos de condenação”, e quando numa relação jurídica multilateral o acto tácito for “favorável a em relação a um ou alguns dos sujeitos, mas não no que respeita aos demais, os quais se vêm confrontados com (uma omissão administrativa geradora de) efeitos desfavoráveis”[8]. Embora reconheçamos que este raciocínio faz todo o sentido, preferimos não limitar o recurso aos tribunais, sendo que preferimos dizer, a título mais geral, que o particular apenas o poderá fazer quando tenha interesse processual nisso (o que embora, à partida, se limite às duas situações discriminadas, poderão, eventualmente ir além delas),
Assim, concluímos que o meio indicado para um particular reagir a um acto tácito, pedindo que a Administração pratique o acto expresso a que estava obrigada, é a acção administrativa especial de condenação à prática de acto devido.
Gostaríamos apenas de fazer uma ressalva no sentido de nos parecer que também aqui se nota que a tese de Marcelo Rebelo de Sousa e de André Salgado de Matos de que o acto tácito não é uma ficção de acto, mas sim uma omissão juridicamente relevante, é mais correcta. Na verdade, se contenciosamente só serve os propósitos do particular a utilização de uma acção que se destina às omissões, então isso significa que, pela sua natureza, o acto tácito é uma omissão.
Parece-nos, assim, que o contencioso administrativo dá uma contribuição valiosa e definitiva para a discussão em torno da natureza do acto tácito.
 
 
Bibliografia consultada:
Almeida, Mário Aroso de, O Novo Regime do Processo nos Tribunais Administrativos, 4.ª ed. , Almedina, 2007
Amaral, Diogo Freitas do, Curso de Direito Administrativo, Vol. II, 8.ª reimpressão da edição de 2001, Almedina, 2008
Andrade, José Carlos Vieira de, Justiça Administrativa (Lições), 9.ª ed., Almedina, 2007
Caetano, Marcello, Manual de Direito Administrativo, Vol I., 10.ª ed., AAFDL, 1986
Otero, Paulo, Legalidade e Administração Pública – O Sentido d Vinculação Administrativa à Juridicidade, Almedina, 2007
Pereira, André Gonçalves, Erro e ilegalidade no acto administrativo, Edições Atica, 1962
Silva, Vasco Pereira da, O Contencioso Administrativo no Divã da Psicanálise – Ensaio sobre as acções no novo processo administrativo, 2.ª ed., Almedina, 2009
Silveira, João Tiago, O Deferimento Tácito - Esboço do Regime Jurídico do Acto Tácito Positivo na Sequência do Pedido do Particular à luz da recente reforma do Contencioso Administrativo, Coimbra Editora, 2004.
Sousa, Marcelo Rebelo de; e André Salgado de Matos, Direito Administrativo Geral, Tomo III, 1.ª ed., Dom Quixote, 2007
 


[1] Acerca da História do instituto v. Sousa, Marcelo Rebelo de; e André Salgado de Matos, Direito Administrativo Geral, Tomo III, 1.ª ed., Dom Quixote, 2007, pp. 389 ss.; Amaral, Diogo Freitas do, Curso de Direito Administrativo, Vol. II, 8.ª reimpressão da edição de 2001, pp. 326 ss. Almedina, 2008, pp. 326 ss.; e Otero, Paulo, Legalidade e Administração Pública – O Sentido d Vinculação Administrativa à Juridicidade, Almedina, 2007, p. 1005.
[2] Cfr. Sousa, Marcelo Rebelo de; e André Salgado de Matos, Direito…, op. cit., p. 390; Silva, Vasco Pereira da, O Contencioso Administrativo no Divã da Psicanálise – Ensaio sobre as acções no novo processo administrativo, 2.ª ed., Almedina, 2009, p. 400; e Almeida, Mário Aroso de, O Novo Regime do Processo nos Tribunais Administrativos, 4.ª ed. , Almedina, 2007
[3] V. Almeida, Mário Aroso de, O Novo…, op. cit., pp. 205 ss.
[4] Cfr. Sousa, Marcelo Rebelo de; e André Salgado de Matos, Direito…, op. cit., p. 390.
[5] V. Almeida, Mário Aroso de, O Novo…, op. cit., p. 207.
[6] V. Silva, Vasco Pereira da, O Contencioso…, op. cit., p. 400.
[7] Cfr. Almeida, Mário Aroso de, O Novo…, op. cit., p. 207.
[8] Cfr. Silva, Vasco Pereira da, O Contencioso…, op. cit., p. 400.

Sem comentários:

Enviar um comentário