quinta-feira, 19 de maio de 2011

A nova forma de actuação da Administração - A Contratualização

No passado, a actuação contratual da Administração Pública era vista com maus olhos pela doutrina clássica, que tinha dificuldade em conciliar a ideia de consenso com o utilização de poder pela Administração. Actualmente, esta visão está ultrapassada, uma vez que a contratualização ganhou grande importância na actuação da Administração Pública, tornando-se numa realidade quotidiana[1].
A utilização de formas contratuais por parte da Administração Pública tanto se pode manifestar através de contratos administrativos, em que a Administração Pública se apresenta dotada de poderes de autoridade, como através de contratos de direito privado, em que há uma equiparação aos contratos celebrados entre privados. Para alguns Autores, como Maria João Estorninho, esta diferença não se justifica e defendem uma aproximação entre este dois tipos de contratos, passando a relegar esse problema para um plano secundário[2]. No mesmo sentido se pronuncia Alexandra Leitão, que chama a atenção para que o fim prosseguido é sempre o exercício da função administrativa e do interesse público. Aliás,  Vasco Pereira da Silva fala de uma autêntica “esquizofrenia” quanto a esta dualidade de conceito de “contrato público” adoptado pelo actual Código da Contratação Pública (D.L. n.º 18/2008)[3]. Se por um lado se tenta uniformizar, simplificar a tipologia e a tramitação dos procedimentos pré-contratuais e se tenta racionalizar o regime material da contratação pública, por outro lado o próprio código no seu art. 1º, n.º 1 persiste em manter a dualidade entre os contratos administrativos e outros contratos da administração. Nem a influência do Direito Europeu conseguiu esbater estas diferenças infundadas. Porém, é de aplaudir a estrutura adoptada pela ETAF (Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais) que no seu art. 4º estabelece uma cláusula geral de longo alcance, que combinada com a enumeração exemplificativa das alíneas a) a n) consagra a competência dos tribunais administrativos para todas as ligações jurídicas correspondentes ao exercício da função administrativa. A adopção de critérios tão alargados permite abrir os tribunais administrativos às novas realidades da moderna actuação administrativa, como as diversas formas de “contratos públicos”[4]. Deste modo evita-se a utilização das categorias tradicionais, já completamente ultrapassadas, e  a adopção de categorias modernas que vêm descomplicar os casos controvertidos a que os tribunais administrativos estavam sujeitos. Vasco Pereira da Silva, em tom de brincadeira, refere que esta cláusula tão ampla do art. 4º do ETAF lhe lembra os tempos de infância onde todas as crianças recebiam uma medalha. Ou seja, todos os contratos correspondentes ao exercício da função administrativa cabem neste artigo, uma vez que os critérios utilizados no mesmo se sucedem e se sobrepõem[5]. Este Autor diz ser necessária a existência de regimes contratuais diferentes no seio da Administração Pública, consoante as funções exercidas. Isto não significa que o uso destas formas contratuais sirva para fugir às vinculações jurídico-públicas. Quanto a este assunto iremos abordá-lo mais à frente.
Independentemente do tipo de contrato em causa, a verdade é que o surgimento do Estado Social trouxe uma mudança no paradigma da dogmática da actuação administrativa. A maioria da doutrina alemã, como Maurer, considera que o acto administrativo não é a única forma de actuação da Administração Pública, apesar de reconhecer a especificidade dos efeitos típicos desta forma de actuação[6]. Não se pode deixar de reconhecer o mérito deste avanço, já que é preferível uma Administração que procure a aceitação das suas decisões, criando uma espécie de consensualidade submersa, nas palavras do italiano Romano[7]. Nesta linha de pensamento, o Autor afirma ser preferível a Administração celebrar um contrato de compra de um terreno do que recorrer à sua expropriação. Deste modo vai existir uma consensualidade real, ainda que informal, da sua actuação, ao mesmo tempo que se evitam tentações de procura de soluções mais fáceis (ou de “baixo negócio”), violadoras dos princípios da imparcialidade e da proporcionalidade. Também Jacqueline Morand-Deviller salienta que o acordo entre as partes é preferível à utilização de procedimentos sancionatórios, já que a participação dos “suspeitos” faz deles “cúmplices”, o que parece ser mais eficaz do que a repressão[8].
Assim a mudança para uma dogmática contratual administrativa permite uma maior participação dos particulares no procedimento administrativo, o que não deixa de ser uma maior preocupação e garantia  de que todos os interesses envolvidos são devidamente ponderados na decisão administrativa. O resultado será uma decisão administrativa mais eficaz e correcta e, consequentemente, mais facilmente aceite pelos seus destinatários.
Problemas com a celebração de contratos com privados
A celebração de contratos com privados acarreta o problema de saber o que acontece caso estes derroguem normas legais já existentes, ou caso o contrato se estenda a particulares não aderentes do contrato em causa. Tome-se como exemplo, para o primeiro caso, a celebração de um contrato com um privado, onde a Administração permite que se ultrapassem as emissões poluentes legalmente previstas. Surge o problema de compatibilização entre a liberdade contratual  e o princípio da legalidade, o que nos pode levantar um problema de inconstitucionalidade[9], por violação do art. 112º, n.º 6, da Constituição, quer estejamos perante um contrato administrativo ou simplesmente um acto administrativo[10]. Vamos focar o nosso estudo no primeiro problema enunciado (derrogação de normas legais).
O princípio da legalidade  tem duas vertentes. A vertente negativa que expressa a prevalência da lei e a vertente positiva expressa na precedência de lei. Nas palavras de Sérvulo Correia, “o princípio da precedência da lei impede que a Administração actue  ‘contra legem’. O da reserva de lei, que a Administração se conduza ‘praeter legem’ ”[11]. Hoje em dia, com o Estado Social, o princípio da legalidade passa a ter uma formulação positiva, funcionando enquanto fundamento, critério e limite de toda a actuação da Administração. Com o Estado Social deixa de fazer sentido e até é insuficiente continuar com a tradicional visão de reserva de lei face à moderna actuação da Administração. Conforme escreve Rogério Soares, “não está em causa a protecção dum status negativus, como anteriormente, mas a garantia do status positivus socialis[12]. Zezchwitz diz que o direito privado administrativo e o direito contratual administrativo estão condenados ao fracasso se, em virtude do princípio da reserva de lei, for exigida uma autorização legal formal a todos os actos da Administração. Maria João Estorninho vem defender que o princípio da legalidade, nas suas duas vertentes, tal como o princípio da prossecução do interesse público, deve vincular toda a actividade administrativa[13]. Porém, esta Autora não nega a necessidade de verificarmos como, e de que formas, se aplica o princípio da legalidade ao direito privado da Administração, pois temos de ter em conta as novas formas de actuação da Administração Pública. Por estas razões, Rui Machete fala-nos da intensidade da aplicação deste principio, ou, nas suas palavras, numa “elasticidade do vínculo de subordinação”[14].
A generalização da forma contratual por parte da Administração que, por um lado, nos traz uma maior eficácia na realização de certos fins públicos, traz-nos, por outro lado,  a desvantagem de uma eventual fuga aos controlos a que está sujeita a Administração Pública[15]. A este propósito, surge um confronto entre os princípios da constitucionalidade, legalidade e tipicidade dos actos normativos e os da eficácia, participação e tutela da confiança dos particulares. Numa primeira análise, poderíamos afastar a admissibilidade da celebração de contratos privados pela Administração que derrogassem normas legais, pela prevalência do princípio da constitucionalidade, legalidade e tipicidade, mas tal não será necessário. Antes de mais, porque não nos podemos esquecer que existem outros princípios em causa e a solução mais adequada será arranjar uma forma de conciliar todos estes dentro do possível. A limitação da celebração dos contratos só aos casos que entrassem na livre margem de apreciação da Administração seria uma das possíveis soluções. Outra hipótese será de se considerarem admissíveis os contratos que, apesar de se afastarem dos limites legais, sejam susceptíveis de encontrar cabimento na previsão legislativa. Ou seja, que não se conduza a uma situação de fraude à Constituição ou à lei, nem ponha em causa os princípios da actuação administrativa, como o da igualdade, proporcionalidade ou imparcialidade. Esta última hipótese só será possível se se entender que a finalidade do art. 112º, n.º 6, da Constituição é evitar “fugas à hierarquia dos actos normativos” e que os contratos privados celebrados pela Administração Pública não têm essa finalidade, sendo antes mecanismos de concertação de aplicação da lei nos termos que ela própria estabelece (a própria lei consagra dois regimes jurídicos - o geral, que será concretizado por um especial através da celebração dos contratos)[16].
É indispensável que se concilie estes princípios através da sua flexibilização e de uma maior fiscalização da actuação da Administração, de modo a que a prossecução dos fins públicos se torne mais eficaz, independentemente da forma de actuação desta e do tipo de contratos em causa.
Depois desta análise, chegamos à conclusão que a celebração de contratos com os particulares, não só é viável, como possível. Garante-se, assim, a diminuição dos deveres e funções do Estado, permitindo-se, ao mesmo tempo, a intervenção dos particulares, que são os principais interessados na boa prossecução dos interesses públicos.


[1] Cfr. Vasco Pereira da Silva, Em Busca do Acto Administrativo Perdido, Almedina, Coimbra, 1996, cit., p. 105
[2] Cfr. Maria João Estorninho, Requiem pelo Contrato Administrativo, Almedina, Coimbra, 1990, cit., p. 15
[3] Cfr. Vasco Pereira da Silva, O Contencioso Administrativo no Divã da Psicanálise, Ensaio sobre as acções no novo processo administrativo, 2.º Edição, Almedina, Coimbra, 2009, cit., p. 487
[4] Cfr. Vasco Pereira da Silva, O Contencioso Administrativo no Divã ..., cit., p.489 e p. 493
[5] Cfr. Vasco Pereira da Silva, O Contencioso Administrativo no Divã ..., cit., p. 501
[6] Cfr. Vasco Pereira da Silva, Em busca..., cit., p.113
[7] Cfr. Alberto Romano, “Il Citadino e la Pubblica Amministrazione”, in Il Diritto Amministrativo degli Anni 80, Giuffrè, Milano, 1987, p. 189, apud Vasco Pereira da Silva, Em busca..., cit., p.107
[8] Cfr. Jacqueline Morand-Deviller,  Le Droit de L’Environnement, 4.º Edição, P.U.F., Paris, 2000, p. 9, apud Vasco Pereira da Silva, Verde Cor de Direito Lições de Direito do Ambiente, Almedina, Coimbra,2002, cit., p. 211
[9] Cfr Mark Kirkby, Contratos de Adaptação Ambiental, AAFDL, 2001
[10] Cfr. Vasco Pereira da Silva, Verde Cor..., p. 217
[11] Cfr. Sérvulo Correia, “Os Princípios Constitucionais da Administração Pública”, in Estudos sobre a Constituição, Vol. 3, Ed. Livraria Petrony, Lisboa, 1979, p. 673   apud Maria João Estorninho, A Fuga para o Direito Privado, Almedina, Coimbra, 1996, cit., p. 177
[12] Cfr. Maria João Estorninho, A Fuga ..., cit., p. 181
[13] Cfr. Maria João Estorninho, A Fuga ..., cit., p. 184
[14] Cfr. Maria João Estorninho, A Fuga ..., cit., p. 185
[15] Cfr. Vasco Pereira da Silva, Em busca..., cit., p. 104
[16] Cfr. Vasco ,Pereira da Silva, Verde Cor..., pp. 218 e 219

Sem comentários:

Enviar um comentário