segunda-feira, 23 de maio de 2011

“Quem cala consente!” – notas acerca do interesse processual em impugnar um acto tácito positivo

O interesse por esta questão surge, por um lado, de uma questão levantada numa aula prática e, por outro lado, de um post colocado neste blog pelo Tiago Garcia Soares (http://contenciososubturma7.blogspot.com/2011/05/deferimento-tacito-parte-1.html) ambos igualmente interessantes!
Não pretendendo ser mais do que uma exposição de notas breves, sendo certa a vontade de maiores reflexões e desenvolvimentos futuros do tema, temos como objectivo responder a duas questões diferentes:
1-      Há algum interesse em o particular que viu o seu pedido tacitamente deferido pedir a condenação da administração à prática do acto devido?
2-      Sendo o acto de deferimento tácito não inteiramente favorável ao particular destinatário, ou violador dos interesses de terceiro, qual será o meio processualmente adequado para o impugnar? Acção administrativa especial ou de condenação à prática de acto devido (visto que se trata de um silêncio da Administração Pública)?
Trataremos de cada uma em separado, sendo que este post se dedicará apenas à primeira questão.

I.     Do interesse processual em recorrer de um acto tacitamente deferido
Começaremos, assim, por tentar saber se um particular que viu a sua pretensão deferida tacitamente, continua ou não a ter interesse processual na condenação da Administração à sua prática expressa.
Sem querermos dedicar muito tempo – pois é matéria de Direito Administrativo - à noção de acto tácito, pode-se dizer, citando Freitas do Amaral, que este existe quando “perante um pedido de um particular, e decorrido um certo prazo sem que o órgão administrativo competente se pronuncie, tendo o dever jurídico de o fazer, a lei considera que o pedido foi satisfeito («deferido»). Aqui, o silencio vale como manifestação tácita da vontade da Administração num sentido positivo para o particular: daí a designação de acto tácito positivo”[1]. A regra no Direito português é a de que, em princípio, o acto tácito é negativo, só sendo positivo quando a lei o previr expressamente. Assim, o art. 108.º CPA prevê uma série de casos em que a omissão de pronúncia da Administração implica o deferimento do pedido do particular.
Ora, se o acto tácito positivo defere integralmente o pedido do particular, então, à partida, não se compreende que interesse se pode invocar para este pretender condenar a Administração à sua prática expressa. Será que este interesse processual existe? A resposta, a nossa ver, depende necessariamente da posição que se adoptar em relação à natureza do acto tácito positivo. Assim, faremos sucintamente uma sistematização das várias posições[2]:
i.      A posição inicial, defendida por Marcello Caetano e Sérvulo Correia, era a de que o acto tácito seria um acto administrativo voluntário, isto é, igual à pronúncia expressa da Administração acerca do pedido do particular. A ideia é a de que os órgãos administrativos sabem que a lei dá como consequência da não pronúncia o deferimento tácito, pelo que, se nada dizem, é porque querem esse deferimento[3]. Mas, muitas vezes, o decurso do prazo deve-se ao excesso de trabalho desses órgãos, ou outros motivos, pelo que a presunção de vontade não parece corresponder à realidade;
ii.    Outros autores, como André Gonçalves Pereira e Rui Machete, defendem que não se trata de um acto administrativo, mas de um simples pressuposto de recurso contencioso. No entanto, isto só faria sentido quanto aos actos tácitos negativos, como inicialmente concebidos, e a verdade é que o acto tácito é tratado como acto administrativo para outros efeitos, como a revogação, e não apenas para o recurso contencioso;
iii.  Mais tarde, Freitas do Amaral, João Caupers, Mário Esteves de Oliveira e João Tiago Silveira defendem que o acto tácito não é um acto administrativo, mas sim uma ficção de acto administrativo, sendo-lhe aplicável todo o seu regime (pressupostos, elementos, requisitos de legalidade, eficácia, execução, revogação, etc.). Devido aos problemas que isto levanta, nomeadamente em relação aos requisitos de formação da vontade da Administração, que esta, obviamente, não cumpriu, João Tiago Silveira[4] explica que, em relação ao destinatário, o acto produziria todos os efeitos de um acto administrativo, mas sem aplicação dos requisitos de legalidade do acto;
iv.  Por fim, Marcelo Rebelo de Sousa defende que o acto tácito tem a natureza de uma omissão juridicamente relevante: “é uma omissão, na medida em que se traduz na não adopção de uma conduta possível (supra); e é juridicamente relevante porque, para além da aplicabilidade das consequências jurídicas gerais das omissões, o art. 108.º, 1 CPA determina que, por sua verificação, se considere satisfeita uma solicitação formulada à administração”[5].
Note-se as soluções distintas a que cada entendimento nos conduz (limitar-nos-emos às posições iii e iv porque considerarmos que a i e ii já foram superadas pela doutrina posterior).
Se considerarmos que o acto tácito é uma ficção de acto administrativo (iii), então não fará, de facto, qualquer sentido pedir ao tribunal a condenação da Administração à prática do acto devido, pois não houve qualquer violação do dever de decidir, nem há uma omissão. O particular obteve o acto que pretende, sendo que este produz todos os efeitos que o acto expresso teria produzido, se houvesse sido praticado.
Se, pelo contrário, considerarmos que o acto tácito é uma omissão juridicamente relevante (iv) a solução já é outra. Note-se que, de acordo com esta tese, o deferimento tácito só cria na esfera do particular a presunção de situação de confiança justificada, sendo que este poderá ser ilidida. Assim, se o particular conhecer que, por exemplo, há interesses de terceiros que foram desconsiderados, ou se simplesmente não houver um investimento em consequência da confiança depositada (que é um requisito do princípio da tutela da confiança) o acto tácito não poderá prevalecer sobre terceiros de boa fé cuja posição tenha sido lesada pelo deferimento.
Poder-se-ia dizer que, estando qualquer acto administrativo sujeito à impugnação contenciosa, que há sempre, simplesmente, uma presunção de validade do acto. Há, no entanto, um argumento de Marcelo Rebelo de Sousa que não podemos ignorar, e com que até tendemos a concordar: é que o acto tácito tem sempre na base uma ilegalidade, que é a violação do dever legal de decisão e do direito do particular a que essa decisão seja tomada. E isto implica, por exemplo, que não foram ouvidos os interessados, que se violou o princípio da imparcialidade, e que não foram ponderados outros interesses juridicamente relevantes e outros direitos subjectivos de terceiros.
De facto, o acto tácito positivo faz prevalecer o direito do particular a uma decisão sobre todos os outros interesses públicos e privados – de terceiros -, de uma forma completamente acrítica e, possivelmente, contra a lei. Como explica Paulo Otero, se em certa situação a lei impunha que a decisão indeferisse certo pedido, e a sua omissão leva a que este seja, ao invés, deferido, então há uma “permissão implícita para o exercício de uma conduta omissiva contra legem”[6]. Assim, não pode restar dúvidas de que os actos tácitos são sempre materialmente ilegais, pois violam o dever legal de decidir e, muitas vezes, também o dever de decidir em conformidade com a lei.  
 Deste modo, conclui Marcelo Rebelo de Sousa que, “A tutela substantiva que o deferimento tácito oferece ao particular requerente é, portanto, ténue: só o princípio da tutela da confiança pode impedir a administração de agir em sentido inverso ao “deferimento”, ou um terceiro de suscitar contenciosamente as ilegalidades provocadas pela omissão administrativa”[7].
Assim sendo, se o particular tiver dúvidas sobre a possibilidade de terceiros lesados pelo acto de deferimento tácito, cujos interesses não foram considerados, terem fundamentos para alegar a sua ilegalidade, terá todo o interesse em exigir que a Administração se pronuncie expressamente sobre a questão, fazendo uma correcta avaliação dos interesses em causa, ouvindo os interessados, fundamentando a decisão, entre outros requisitos que o acto tácito, por natureza, não preenche.
Concluindo, a nossa resposta à primeira questão é positiva: o particular poderá ter interesse, mesmo após o deferimento tácito, em que a Administração cumpra o seu dever de decidir (que não se encontra, na visão da tese iv, extinto com o acto tácito[8]). Não chegaríamos a esta conclusão se limitássemos a nossa análise à relação entre a Administração e o particular que formulou o pedido: aqui, com a não decisão a Administração perderia toda a legitimidade para, mais tarde, vir a fazer prevalecer os seus interesses sobre os do particular, excepto nos termos em que o pode fazer com qualquer acto administrativo expresso. No entanto, a necessidade de reconhecer que há uma multilateralidade das relações administrativas leva a que não seja possível afirmar que a desconsideração dos terceiros particulares o impeça de fazer valer os seus interesses em todas as situações, pelo que somos obrigados a concordar com Marcelo Rebelo de Sousa quanto à natureza do acto tácito e, daí, temos de retirar que existe interesse em agir da parte do destinatário do acto.
Note-se que Vasco Pereira da Silva parece pronunciar-se no mesmo sentido, quando explica que a condenação à prática de acto devido numa situação de acto tácito só é possível em duas situações: na hipótese de o acto de deferimento tácito “não corresponder integralmente às pretensões do particular, pelo que, nessa medida, pode ser considerado como parcialmente desfavorável, o que permite “abrir a porta” a pedidos de condenação”, e quando numa relação jurídica multilateral o acto tácito for “favorável a em relação a um ou alguns dos sujeitos, mas não no que respeita aos demais, os quais se vêm confrontados com (uma omissão administrativa geradora de) efeitos desfavoráveis”[9].
No entanto, o autor conclui desta forma, embora pareça considerar que o deferimento tácito é uma ficção legal, pois inicia esse parágrafo com a seguinte expressão: “Mas, sendo o deferimento tácito uma “ficção legal” de efeitos positivos, ainda assim, julgo não ser de afastar, sem mais, a admissibilidade de pedidos de condenação, pelo menos em duas situações (…)”. É ainda de realçar que o autor parece adoptar esta posição meramente em contraposição com a tese i, isto é, a tese segundo a qual o acto tácito seria um acto administrativo voluntário, sendo que Vasco Pereira da Silva a rejeita. No entanto, este autor não considera a posição segundo a qual o acto tácito seria uma omissão juridicamente relevante (defendida, recorde-se, por Marcelo Rebelo de Sousa e André Salgado de Matos), embora se refira continuamente durante o texto ao acto tácito como “omissão” e não como “acto fictício” (cfr. a título de exemplo, o excerto já citado: os quais se vêm confrontados com (uma omissão administrativa geradora de) efeitos desfavoráveis).
Assim, com todo o respeito, questionamos se Vasco Pereira da Silva não terá, naturalmente, uma posição semelhante à de Marcelo Rebelo de Sousa ainda sem que o afirme expressamente, visto que as excepções que faz à tese que adopta e as conclusões que tira são substancialmente as mesmas.
Independentemente disso, concluímos, então, que sempre que o particular sinta que a sua segurança jurídica pode ser posta em causa pelas condições débeis de legalidade – em termos de ponderação de interesses, fundamentação, audiência dos interessados, etc. – em que o acto tácito, pela sua natureza, se formou, então terá interesse processual em recorrer ao contencioso administrativo. Resta saber através de que meio processual, o que veremos num futuro post.


Bibliografia consultada:
Almeida, Mário Aroso de, O Novo Regime do Processo nos Tribunais Administrativos, 4.ª ed. , Almedina, 2007
Amaral, Diogo Freitas do, Curso de Direito Administrativo, Vol. II, 8.ª reimpressão da edição de 2001, Almedina, 2008
Andrade, José Carlos Vieira de, Justiça Administrativa (Lições), 9.ª ed., Almedina, 2007
Caetano, Marcello, Manual de Direito Administrativo, Vol I., 10.ª ed., AAFDL, 1986
Otero, Paulo, Legalidade e Administração Pública – O Sentido d Vinculação Administrativa à Juridicidade, Almedina, 2007
Pereira, André Gonçalves, Erro e ilegalidade no acto administrativo, Edições Atica, 1962
Silva, Vasco Pereira da, O Contencioso Administrativo no Divã da Psicanálise – Ensaio sobre as acções no novo processo administrativo, 2.ª ed., Almedina, 2009
Silveira, João Tiago, O Deferimento Tácito - Esboço do Regime Jurídico do Acto Tácito Positivo na Sequência do Pedido do Particular à luz da recente reforma do Contencioso Administrativo, Coimbra Editora, 2004.
Sousa, Marcelo Rebelo de; e André Salgado de Matos, Direito Administrativo Geral, Tomo III, 1.ª ed., Dom Quixote, 2007



[1] Cfr. Amaral, Diogo Freitas do, Curso de Direito Administrativo, Vol. II, 8.ª reimpressão da edição de 2001, Almedina, 2008, p. 327.
[2] Boa sistematização das posições em Sousa, Marcelo Rebelo de; e André Salgado de Matos, Direito Administrativo Geral, Tomo III, 1.ª ed., Dom Quixote, 2007, p. 391.
[3] V. Caetano, Marcello, Manual de Direito Administrativo, Vol. I., 10.ª ed., AAFDL, 1986, p. 476 ss.
[4] V. Silveira, João Tiago, O Deferimento Tácito - Esboço do Regime Jurídico do Acto Tácito Positivo na Sequência do Pedido do Particular à luz da recente reforma do Contencioso Administrativo, Coimbra Editora, 2004.
[5] Cfr. Sousa, Marcelo Rebelo de; e André Salgado de Matos, Direito…, op. cit., pp. 393 ss.
[6] Cfr. Otero, Paulo, Legalidade e Administração Pública – O Sentido d Vinculação Administrativa à Juridicidade, Almedina, 2007, p. 1005 e 1006.
[7] V. Sousa, Marcelo Rebelo de, Direito…, op. cit., p. 394.
[8] Cfr. Idem, ibidem. Explica Marcelo Rebelo de Sousa que “se o deferimento tácito extinguisse o procedimento administrativo extinguiria também o dever legal de decidir, o que não faz sentido; ora, implicando sempre o deferimento tácito, por definição, uma violação do dever legal de decidir, ele não pode simultaneamente, sob pena de total absurdo, implicar a extinção desse dever. A formação do deferimento tácito (e, por maioria de razão, o decurso do prazo para conclusão do procedimento que não implique tal consequência) não têm, por isso, qualquer efeito extintivo do procedimento administrativo e deixam incólume o dever administrativo de emitir uma decisão sobre a pretensão formulada”. Parece-nos que esta argumentação é inteiramente procedente.
[9] Cfr. Silva, Vasco Pereira da, O Contencioso Administrativo no Divã da Psicanálise – Ensaio sobre as acções no novo processo administrativo, 2.ª ed., Almedina, 2009, p. 400.
 

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