segunda-feira, 9 de maio de 2011

Responsabilidade civil do Estado

A responsabilidade civil é um conceito ético associado à ideia de que quem pratica um acto lesivo a outrem deve reparar a situação anterior (reconstituição natural) ou, não o sendo possível, indemnizar o lesado.
Apesar de este ser um conceito bastante conhecido e assente no Direito privado, a verdade é que a ideia de se responsabilizar o Estado pelos seus actos não surge antes de inícios do séc. XIX: a manifestação da vontade do soberano não podia gerar qualquer obrigação de indemnizar, uma vez que the king can do no wrong. A primeira tentativa de fundar a obrigação de indemnizar prejuízos causados a particulares por parte do Estado em princípios autónomos, não reconduzíveis ao direito civil, foi o célebre acórdão Blanco, proferido em 1873 pelo Tribunal de Conflitos francês.
Até há pouco tempo, a responsabilidade civil extracontratual do Estado, em Portugal, era regulada pelo Decreto-Lei n.º 48051, de 21 de Novembro de 1967, publicado na sequência do Código Civil, diploma este que regulava a responsabilidade da Administração por actos de gestão pública. A responsabilidade por actos de gestão privada continuaria a ser regulada pelo art. 501º CC. Desta situação, vigente até à entrada em vigor da reforma do Contencioso Administrativo, resultava que, nas palavras de VASCO PEREIRA DA SILVA, “o direito de responsabilidade administrativa, com a respectiva dualidade de regimes jurídicos e de tribunais competentes, podia ser caracterizado pela ideia de fragmentação.” O facto de pelos danos causados no exercício de actividades de gestão privada a Administração responder perante os tribunais judiciais e pelos danos causados no desempenho de funções públicas já o ser perante os tribunais administrativos era ilógico, assentando numa distinção que dificilmente fará muito sentido. Este sistema, que vigorou até 2004, era injusto, uma vez que a ausência de critérios lógicos de distinção entre gestão pública e privada gerava dúvidas quanto ao direito aplicável e até muitas vezes conflitos de jurisdição negativos.
Já há muito que a doutrina debatia a necessidade de rever o velho regime legal. Tal revisão ganhou maior urgência com a entrada em vigor do novo ETAF e do CPTA. Na verdade, por força desta reforma, a jurisdição administrativa passou a ser competente para toda e qualquer acção de responsabilidade a propor contra o Estado e outras entidades públicas, trate-se de actos de gestão pública ou de gestão privada, distinção que a lei processual já não reconhece (alíneas g) h) e i) do n.º1 do artigo 4.º do ETAF). Da análise destes preceitos resulta a consagração de um regime de unidade jurisdicional, tanto no que respeita ao contencioso da responsabilidade civil extracontratual da Administração Pública, pelo abandono da dicotomia gestão pública e gestão privada, como também no que se refere ao contencioso de toda a responsabilidade civil pública. É que se havia o problema, atrás referido, da difícil e ilógica distinção entre gestão pública e gestão privada (que gerava dúvidas, insegurança e conflitos jurisdicionais), ainda havia outro problema: distinguia-se o contencioso da responsabilidade civil administrativa, que era da competência dos tribunais administrativos, do contencioso da responsabilidade civil dos demais poderes do Estado, que era da competência da jurisdição comum. Estes dois problemas acabaram por ser resolvidos, e bem, dando-se, então a tal unificação do sistema, tornando-o mais lógico e seguro.
Hoje, o regime da responsabilidade civil extracontratual do Estado encontra-se regulado na Lei 67/2007, que no seu art. 1º inclui, no seu âmbito material, todos os poderes do Estado. Não está em causa que as responsabilidades do Estado-legislador e do Estado-juiz devam ser apuradas mediante a aplicação de princípios e regras que não são, nem podem ser, totalmente idênticos às do Estado-administrador. O que está subjacente a esta inovação é a ideia de que os actos praticados pelo Estado, enquanto um todo, devem ser tratados de forma unitária, pese embora possam ser tidos em conta elementos diferentes consoante o poder ao abrigo do qual este actuou. Por outro lado, para efeitos processuais, qualquer relação de responsabilidade civil pública deverá ser qualificada como administrativa, independentemente do órgão e do poder em que ela se encontra inserida. Muito embora tenha desaparecido a referência a actos de gestão pública, a verdade é que a situação da dualidade de regimes substantivos de responsabilidade se mantém. A lei em análise aplica-se apenas a acções e omissões adoptadas no exercício de prerrogativas de poder público ou reguladas por disposições ou princípios de direito administrativo. É precisamente por isso que o artigo 501.º do Código Civil não foi revogado pelo novo diploma legal.
No que respeita ao âmbito subjectivo, muito embora subsista a referência ao Estado e demais pessoas colectivas de direito público, o legislador alargou o âmbito de aplicação subjectiva do novo regime legal às pessoas colectivas de direito privado que actuem com prerrogativas de poder público ou sob a égide de princípios e regras de direito administrativo (artigo 1.º, n,º2), aproximando-se assim de uma concepção material da Administração Pública (como actividade e não como organização).
A responsabilidade civil da Administração Pública surgiu primeiro como uma responsabilidade subjectiva, envolvendo um juízo de censura sobre o comportamento do causador do prejuízo que, podendo e devendo ter optado por outra conduta, escolheu aquela que era censurável e potencialmente danosa. Esta responsabilização assenta nas ideias de ilicitude e culpa. Mais recente é a responsabilidade objectiva. Na verdade, a responsabilização objectiva não radica em qualquer juízo de reprovação do comportamento do causador do dano, antes decorrendo de comportamentos que, não obstante perfeitamente aceitáveis no plano social, são especialmente vantajosos para aquele que, adoptando-os, causa o prejuízo, conduzindo a lei a determinar que este deve ser por ele suportado. A responsabilidade objectiva é, no essencial, um instrumento de repartição de encargos, que associa o prejuízo causado pela conduta aos benefícios decorrentes desta.
Assim, fora do âmbito da ilicitude, ao abrigo da Lei 67/2007, podem o Estado e outras entidades públicas ser responsabilizados por prejuízos causados por actividades, coisas ou serviços administrativos particularmente perigosos (art. 11º). É certo que estas actividades são do interesse da colectividade e para a satisfação dos seus interesses, pelo que, quando delas resultar um prejuízo para o particular, este não o pode suportar sozinho. Nesta sequência, o dano é transferido, então, para a colectividade, por via do pagamento de uma indemnização, financiada com o dinheiro dos contribuintes.
Para terminar a análise deste diploma, cabe ainda referir o seu art. 16º, que estatui sobre a responsabilidade do sacrifício. Estão em causa situações em que o Estado ou outras entidades públicas imponham a particulares encargos ou causem danos especiais e anormais no interesse da colectividade – por razões de interesse público, na letra da lei.
Esta situação era reconduzida no domínio da lei anterior a uma espécie de responsabilidade, a responsabilidade objectiva pela prática de actos lícitos, e aproximada da responsabilidade pelo risco. A responsabilidade pelo sacrifício está associada à ideia de que devem ser compensadas as desvantagens económicas produzidas aos particulares nas situações descritas no preceito, embora não se trate propriamente duma situação de responsabilidade civil. Optou, então, o legislador por não adoptar o termo “responsabilidade civil”, escolhendo a designação, que também já era comum, de indemnização pelo sacrifício. Na verdade, estamos muito mais perto de uma situação como a expropriação por utilidade pública do que de um caso de responsabilidade civil.
Por último, e para concluir esta análise geral da responsabilidade civil do Estado, cabe ainda referir a dualidade de meios processuais disponíveis para os particulares: a acção administrativa comum e a acção administrativa especial. Na lógica do CPTA, as questões de responsabilidade civil pública geram pedidos susceptíveis de ser tutelados, em princípio, pela acção administrativa comum, a menos que se verifique a cumulação com outros pedidos, caso em que o meio processual adequado já será a acção administrativa especial. Como salienta VASCO PEREIRA DA SILVA, “são múltiplos os argumentos favoráveis à consagração de um tal sistema de cumulação de pedidos, tanto do ponto de vista da justiça material, como da tutela processual dos interesses em jogo, designadamente dos direitos dos particulares, pois a presente solução assegura a possibilidade de apreciação jurisdicional da integralidade da relação jurídica existente entre as partes.” Como tal, resta concluir que toda esta evolução do contencioso administrativo, particularmente no tocante à responsabilidade civil do Estado, é de louvar e que o caminho traçado no sentido de acabar com as dicotomias existentes e apontadas se apresentou bastante vantajoso.

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