domingo, 8 de maio de 2011

Reforma do Contencioso Administrativo: o que mudou?

No passado dia 1 de Janeiro de 2004, entrou em vigor a legislação relativa à Reforma do Contencioso Administrativo, após um longo período de discussão pública e preparação da concretização da reforma.
         Com a entrada em vigor do novo Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais (Lei nº 13/2004 de 19 de Fevereiro) e do novo Código de Processo dos Tribunais Administrativos (Lei nº 15/2002 de 22 de Fevereiro), assistiu-se, finalmente, à concretização do modelo constitucional de Justiça Administrativa, que havia sido muito reclamado.
         Porém, as reformas legislativas por si só nada fazem, pois toda a norma requer uma interpretação, feita não apenas em abstracto, na relação entre a letra e o espírito da lei, mas também, e sobretudo, em concreto.
         Ultrapassou-se o modelo contencioso de raiz francesa, centrado no recurso contencioso de anulação e fortemente limitador dos poderes de decisão do juiz, para se passar a admitir uma nova relação de poder entre o juiz administrativo e a Administração, assistindo-se ainda a um forte alargamento dos meios processuais ao alcance do particular, mas essa é uma questão que abordarei mais adiante.
         Nestes termos, o juiz passa agora a dispor de todos os poderes inerentes à função jurisdicional, nomeadamente os poderes de reconhecer direitos, condenar a Administração a comportamentos e prestações, adoptar medidas cautelares que considere convenientes, executar as suas decisões, impor à administração sanções pecuniárias compulsórias e ordenar as diligências de prova que considere necessárias para o apuramento da verdade. Por outro lado, veio a referida reforma assegurar que os tribunais administrativos funcionam como verdadeiros tribunais, cuja existência e autonomia se encontram plenamente justificadas. Em face disso, veio o legislador, pela primeira vez, enumerar o conjunto de matérias que considerou serem da competência exclusiva dos tribunais administrativos e fiscais. Passou-se, então, a um contencioso de plena jurisdição, estruturado com o intuito de proporcionar uma efectiva tutela a quem quer que se lhe dirija, como claramente resulta do artigo 2º nº 4 do Código de Processo dos Tribunais Administrativos. Admitindo que não sejam só os indivíduos a poderem dirigir-se à tão proclamada Justiça Administrativa, em defesa dos seus direitos e interesses particulares, mas também o Ministério Público, as entidades públicas, as associações cívicas e os próprios cidadãos, em defesa dos interesses públicos, colectivos e difusos.
         Já que falava em sujeitos individuais acresce dizer que o novo contencioso, centrado em torno do princípio da tutela jurisdicional efectiva, acaba por tutelar as posições subjectivas dos interessados fazendo, por isso, corresponder a cada direito ou interesse legalmente protegido do particular, um meio adequado de defesa em juízo, seja uma tutela cautelar, um processo declarativo ou um processo executivo. Importa ainda referir que a admissibilidade de todos os meios probatórios que fazem parte do processo civil veio possibilitar o acesso directo aos factos eliminando-se, desta forma, as tradicionais restrições quanto aos meios de prova admissíveis em processo administrativo.
         Para além do que foi dito, hoje quem se dirige à jurisdição administrativa em busca da tutela jurisdicional, pode também obter do tribunal a adopção de providências destinadas a acautelar o efeito útil da decisão judicial durante todo o tempo em que o processo declarativo estiver pendente. Figura que antes era praticamente inexistente, pois apenas se previa a possibilidade de recurso à figura da “suspensão da eficácia do acto administrativo”, mas agora o leque de providências previsto pelo Código é bastante vasto, comportando para além das providências especificadas no Código de Processo Civil, todas aquelas que se mostrem adequadas a assegurar a utilidade da sentença a proferir no processo principal. A importância desta medida legislativa, não pode deixar de ser salientada, uma vez que, sem uma tutela cautelar efectiva não pode existir tutela declarativa nem uma tutela executiva eficazes. Em face de tão rigoroso catálogo, recai sobre o juiz administrativo a enorme responsabilidade de ponderar, caso a caso, se a solicitação da providência cautelar é destituída de fundamento ou, pelo contrário, está plenamente fundada, na medida em que, é verosímil que durante a pendência da acção, a situação de facto se altere de modo a que a decisão nela proferida, sendo favorável, perca toda a sua eficácia ou, pelo menos, parte significativa dela.
Visto isto, pode afirmar-se que as alterações no plano processual dirigiram-se, essencialmente, a dar cumprimento ao imperativo constitucional de que os tribunais administrativos deveriam proporcionar uma tutela jurisdicional efectiva, aliás também expressa no CPTA, nomeadamente no seu art.2º, ou seja, plena tutela das posições subjectivas dos interessados, e que, como tal, faz corresponder, a cada direito ou interesse legalmente protegido do particular, um meio adequado de defesa em juízo. Procedendo o legislador, para o efeito, a um claro reforço dos poderes dos tribunais administrativos, nos planos declarativo, executivo e cautelar em que a própria tutela se desdobra. A concretização desta opção assentou, desde logo, na definição de dois principais meios processuais, a acção administrativa comum e a acção administrativa especial, cada uma delas dando origem quer a sentenças de simples apreciação, quer ainda a sentenças de anulação ou de condenação, tudo dependendo do pedido em concreto formulado.
Admite-se também agora, com grande amplitude a cumulação de pedidos, em função da mesma relação jurídica ou da mesma matéria de facto ou de direito (artigo 4º CPTA) e alarga-se ainda a legitimidade processual.
Assistimos ainda, ao funcionamento dos tribunais administrativos de círculo a actuarem, de facto, como tribunais de primeira instância para a maioria das situações, ao passo que o Supremo Tribunal Administrativo e o Tribunal Central Administrativo deixaram, por regra, de funcionar como tribunais de primeira instância, para passarem a exercer competências típicas de tribunais superiores, porém, anteriormente, todos os tribunais administrativos, independentemente do seu nível hierárquico, eram pelo menos também tribunais de primeira instância. Assim sendo, o Tribunal Central Administrativo intervém hoje, essencialmente, como tribunal de recurso das decisões dos tribunais administrativos e fiscais de 1ª instância, e o Supremo Tribunal Administrativo assume, finalmente, a sua função de Tribunal regulador do sistema, competindo-lhe apreciar questões de especial relevância jurídica ou social, com o objectivo de assegurar a fixação de jurisprudência.
         Em conclusão, a Reforma estabeleceu um modelo tendencialmente subjectivista, consagrando o processo administrativo como um processo de partes e alargando os poderes de decisão do juiz perante a Administração. Sendo que os contornos precisos do “novo” contencioso administrativo são moldados no confronto com o caso concreto e na aplicação pioneira dos novos meios processuais.
Quanto à aplicação na prática deste novo modelo de Justiça Administrativa pode dizer-se que é geral a convicção de que o balanço desta Reforma é manifestamente positivo, porque assiste-se a uma convicção partilhada não só pelos mais variados operadores dentro da comunidade jurídica, como também, fora dela, pelo cidadão comum, que se vê finalmente dotado de um verdadeiro direito de acção contra a Administração, de um leque amplo de providências cautelares, de um processo eficaz de execução de sentenças, tudo isto inovações que operam no âmbito de um processo administrativo caracterizado pelo tratamento paritário das partes, pelo levantamento de limitações aos meios de prova admissíveis, pela desburocratização e simplificação generalizada dos procedimentos, e, por isso mesmo, potenciador de uma maior economia processual, de uma maior celeridade na emanação das decisões judiciais e, finalmente, de uma prestação global mais equitativa e eficaz da Justiça.



Bibliografia:

3ª Edição Revista e Actualizada
Grandes Linhas da Reforma do Contencioso Administrativo de Diogo Freitas do Amaral e Mário Aroso de Almeida
Edição/reimpressão: 2004

Sofia Henriques, “A Tutela Cautelar não Especificada no Novo
Contencioso Administrativo Português”, Coimbra Editora.


José Carlos Vieira de Andrade, “ A Justiça Administrativa”
10ª Edição, Almedina


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