terça-feira, 17 de maio de 2011

Sobre a Autonomia da Jurisdição Administrativa

Apresento um excerto do discurso do Conselheiro Lúcio Alberto de Assunção Barbosa na sua tomada de posse como Presidente do Supremo Tribunal Administrativo, em 16 de Dezembro de 2009. Nestas fase do discurso é analisada a validade da autonomia da Jurisdição Administrativa.

“Aproxima-se o tempo de revisão constitucional. E paira no ar, larvar, a ameaça da autonomia da jurisdição. É uma questão recorrente. Quase duzentos anos depois da sua criação – o Conselho de Estado, que precedeu a criação do Supremo Tribunal Administrativo, data de 1845 – , eis que se fala uma vez mais na integração desta jurisdição na jurisdição comum. Tentativas idênticas tiveram lugar, sem resultado, na monarquia e na I República. Bater-me-ei para que, hoje, idêntico insucesso tenha a tentativa que, de forma silenciosa e encapotada, está em curso.
A questão é hoje mais preocupante, visto circularem até estudos que apontam para essa solução, como se estes fossem neutros e fossem o «abre-te sésamo» da solução deste problema. Mas esta questão – há que dizê-lo sem rodeios – também tem, ou
tem sobretudo, uma dimensão política e corporativa. Na verdade, esta jurisdição, hoje rejuvenescida com a reforma empreendida em 2004, afirma-se cada vez com um potente foco polarizadorde poder.
Aqui se jogam, cada vez mais, as grandes questões que afligem as sociedades actuais.Cada vez mais o direito público é chamado a intervir e a regular as
complexas relações entre os cidadãos e o poder. Ora, uma magistratura que abarcasse não só o direito comum, mas também o direito público tornava-se uma magistratura poderosíssima, portadora de um poder mais vasto e cada vez mais influente. Aqui uma dimensão corporativa. Mas também uma dimensão política.
È expectável que, num segundo momento, haja a tentação de controlar ou, pelo menos, influenciar o poder judicial, o que é mais facilmente alcançável se todo o poder judicial estivesse reunido numa única jurisdição. Basta uma nova revisão constitucional com esse objectivo. Daí que os próceres desta revolução sejam muitos daqueles que, nos bastidores, procuram consumar este intento. Mas posso assegurar-vos que o Presidente do Supremo Tribunal Administrativo está atento e não só não ficará silencioso como se irá bater com todas as forças contra essa solução. E eu sou um homem de causas. Todavia, cabe ao legislador constituinte uma última palavra sobre a questão e espera-se dele a lucidez suficiente para que a solução final não seja mais um erro. Aliás, não deixa de ser estranho que numa época de crise das instituições, em que tudo parece desmoronar, com tantos e tão graves problemas em mãos, se queira, agora, equacionar essa questão. Como se ela fosse a panaceia para todos os problemas. De resto, acrescente-se que, para além dessa dimensão política e corporativa, esta questão tem também uma dimensão científica igualmente relevante. Com efeito, a eventual integração desta jurisdição na jurisdição comum constituiria um golpe fatal no funcionamento da justiça do direito público. Não mais os juízes seriam altamente especializados nesta área tão específica.
Não mais haveria juízes nos Tribunais Superiores com grande experiência e conhecimentos nesta relevante área de saber. Quem ganharia com essa alteração? O cidadão comum não seria com certeza. Seria, pois, um erro insanável a concretização deste projecto. Esperemos, assim, que o legislador constituinte não faça escolhas erradas. E tenha presente que um povo sem memória é um povo sem futuro.
É certo que esta jurisdição se debate hoje com problemas ingentes mas a sua solução não passa por aí. Os nossos problemas são outros. Num tempo em que tanto se fala de avaliação, em que esta está erigida como uma âncora que conduz à excelência, encontra-mo-nos há seis anos sem um quadro de inspectores.
Por outro lado, a reforma do contencioso tributário está por completar. O quadro de juízes de 1ª instância, ao nível desta área, é absolutamente incapaz de responder à procura. O que significa que, nem a curto nem a médio prazo, haverá qualquer possibilidade de responder às necessidades dos cidadãos. É certo que o poder político proporcionou há pouco tempo um reforço de juízes nesta área de jurisdição, com um recrutamento excepcional de magistrados judiciais e do Ministério Público. Minorou o problema. Mas não o resolveu. É preciso solucionar esta questão com o recrutamento – por via normal, acentue-se, e não mais por recrutamentos ad hoc – de um número de juízes, que responda às necessidades nesta área. E à sua crescente relevância. E dotar os tribunais de um número de funcionários que responda às necessidades dos quadros.
Sem funcionários nem é possível movimentar os processos e não há resposta ao labor dos magistrados. E é preciso atalhar rapidamente este magno problema, até por razões económicas. Ouvem-se queixas sobre o mau funcionamento da justiça, e como este afecta ou pode afectar o desenvolvimento económico. Diz-se que muitas empresas estrangeiras têm dúvidas em instalarse no País, porque a justiça não funciona, ou funciona de uma forma tão lenta que causa danos irreparáveis ao seu labor. Mas como é possível dar resposta a tais solicitações com uma tão gritante falta de meios?
Num tempo de grandes dificuldades económicas, em que todo o investimento económico é necessário, há que repensar rapidamente este problema, fazendo funcionar de forma eficaz estes Tribunais. É que – não o esqueçamos – a área fiscal é uma área da maior relevância não só para os cidadãos, como também para as empresas. E a solução para este problema – hoje insolúvel pelos meios tradicionais – poderá passar obrigatoriamente pela resolução alternativa dos litígios pendentes, através de um compromisso arbitral, que permita a solução dos mesmos através de soluções extrajudiciais. Mas o problema não se esgota aqui.
Seis anos após a implementação da reforma do contencioso administrativo, talvez seja o momento de a repensar e introduzir as alterações que se mostrem necessárias. E também nos tribunais superiores há que repensar com urgência o redimensionamento dos quadros, pois há áreas – quer na área administrativa (TCA – Sul), quer na área tributária (TCA – Norte) onde a situação é preocupante. Tudo questões a justificar uma rápida solução por parte do poder político.”

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