terça-feira, 29 de março de 2011

“UMA PANORÂMICA GERAL SOBRE OS MEIOS PROCESSUAIS” ou “UMA MÃOZINHA PARA O ESTUDO DE CONTENCIOSO ADMINISTRATIVO”

Caros colegas,
Na medida em que terminámos (ontem nas aulas práticas e hoje nas teóricas) o estudo dos pressupostos processuais gerais e estamos a começar a avançar no estudo mais aprofundado de cada meio processual, achei que vos poderia ser útil este esquema dos meios processuais disponíveis no contencioso administrativo, que fiz para estudo pessoal.
Espero que seja útil como ponto de partida para o vosso, e é nessa esperança que o insiro neste blog, embora não se trate exactamente de nenhum dos conteúdos sugeridos pela nossa Professora! Talvez possa dar, com um ou outro retoque, uma boa súmula para uma entrada na wikipedia (até porque notei que não há, escandalosamente, nenhuma  entrada para a expressão “acção administrativa”, nem semelhante!!!).
Tenho sentido que é mesmo importante ter uma panorâmica geral dos vários meios processuais para conseguir “encaixar” mentalmente o que estou a estudar dentro das várias “gavetinhas” do contencioso administrativo.
Desfrutem!

ESQUEMA DOS MEIOS PROCESSUAIS:
1-   Principais:
a.     Não urgentes:
                                          i.    Acção administrativa comum
                                         ii.    Acção administrativa especial
1.    Para impugnação de actos administrativos
2.    De condenação à prática de acto devido
3.    Sobre normas
b.    Urgentes:
                                          i.    Intimações:
1.    Para a protecção de informações, consulta do processo e passagem de certidões
2.    Para a protecção dos direitos liberdades e garantias
                                         ii.    Impugnações:
1.    Matéria eleitoral
2.    Actos pré-contratuais
2-  Acessórios: providências cautelares
a.   Conservatórias
b.  Antecipatórias

3-   Executivo (para quando a Administração Pública não cumpre algo a que foi condenada)


ÂMBITO DE APLICAÇÃO DE CADA MEIO PROCESSUAL:

1.a.i. Acção administrativa comum
- O âmbito de aplicação deste meio processual delimita-se em função de dois critérios:
1-    Critério processual: vem expresso no artigo 37.º CPTA, que determina que é uma acção residual, isto é, cabem-lhe todos os processos não especialmente regulados no CPTA ou em legislação avulsa.
2-    Critério substantivo: não está expresso no CPTA, sendo um critério “oculto”, delimitado em razão das formas de actuação administrativa, também de forma residual: é o meio processual adequado para o controlo todas as formas de actuação administrativa que não o acto administrativo e o regulamento, pois estes são controlados em sede de acção especial. Resta, assim, para esta acção, o julgamento de contratos e actuações informais e técnicas ou de operações materiais.
- É ainda importante realçar que a esta acção comum se aplicam as regras do Código de Processo Civil.

1.a.ii. Acção administrativa especial
- Vem prevista nos artigos 46.º ss CPTA.
- Pode assumir uma de 3 modalidades:
1-    Acção administrativa especial para impugnação de actos administrativos;
2-    Acção administrativa especial de condenação à prática de acto devido;
3-    Acção administrativa especial sobre normas.
- A acção especial já possui regras de procedimento próprias, aplicando-se o CPC a título meramente subsidiário.

1.a.ii.1. Acção administrativa especial para impugnação de actos administrativos
- Só se poderá recorrer a esta acção quando o acto seja impugnável. Assim, há que notar que o artigo 51.º CTPA introduziu uma alteração radical no contencioso da impugnação de actos! Anteriormente falava-se de actos definitivos e executórios[1], sendo que agora basta que os actos tenham efeitos externos, nomeadamente lesivos.

1.a.ii.2. Acção administrativa especial de condenação à prática de acto legalmente devido
- Pode recorrer-se a este meio em três situações:
1-    Omissões administrativas: quando a Administração não decide dentro do prazo.
2-    Indeferimento expresso: quando a Administração recusa a protecção do particular. Esta é a forma correcta de reagir, não a impugnação do acto (art. 51.º/4 CPTA). Se o particular tiver razão o acto de indeferimento é automaticamente eliminado da ordem jurídica (art. 66.º/2 CPTA).
3-    Administração recusa-se a pronunciar-se acerca do pedido do particular.

1.a.ii.3. Acção administrativa especial sobre normas
- Esta modalidade de acção divide-se em dois tipos diferentes:
1-    Acção de impugnação de normas por ilegalidade: aplica-se a normas emanadas ao abrigo de disposições do Direito Administrativo, isto é, a normas regulamentares[2].
Pode ser utilizada em quatro situações:
a.     Art. 73.º/1: por iniciativa do particular, se a norma já tiver sido desaplicada em 3 casos concretos.[3] Tem força obrigatória geral.
b.    Art. 73.º/2: por iniciativa do particular, se se tratar de uma norma que produza efeitos jurídicos directamente e imediatamente sobre a sua esfera jurídica. É raro porque estas normas, em princípio, são gerais e abstractas, sendo esta afectação mais comum quando se trata de um acto administrativo ou de uma sentença; mas quando produzir estes efeitos o particular pode pedir! O tribunal não pode declarar com força obrigatória geral, só tem eficácia naquele caso concreto.
c.     Art. 73.º/3: por iniciativa do Ministério Público, que pode pedir a declaração de ilegalidade com força obrigatória geral, mesmo que não existam três casos concretos anteriores a desaplicar a norma.
d.    Art. 73.º/4: por iniciativa do MP, que tem obrigação de pedir a declaração de ilegalidade com força obrigatória geral se já tiver havido três casos concretos de desaplicação da norma.
Os efeitos da declaração de ilegalidade com força obrigatória geral estão no art. 76.º, muito semelhante ao 282.º da CRP.
2-    Acção de declaração de ilegalidade por omissão: a possibilidade de declarar a ilegalidade por omissão de normas é uma novidade, aplicando-se às situações em que as leis remetem a sua regulamentação para um regulamento posterior que nunca vem a ser produzido, nunca ganhando verdadeira eficácia e exequibilidade.

1.b. Meios processuais urgentes
- Sem entrar em grandes detalhes acerca destes meios processuais e das suas fronteiras com os meios de tutela cautelar (pretendo fazê-lo, como já referi, num futuro próximo, aqui neste blog), há que dizer apenas que os meios processuais urgentes oferecem uma composição definitiva do litígio, havendo uma decisão a título principal.

2. Providências Cautelares
- Como sabemos, as providências cautelares oferecem apenas uma tutela acessória, instrumental, e, por isso, provisória da situação, que deverá ser sempre seguida de uma decisão definitiva a título principal.
- Estas podem ser:
1-    Conservatórias: visam manter o status quo ante, isto é, manter a situação como está;
2-    Antecipatórias: visam alterar o status quo ante (note-se que essa alteração não pode ser irreversível, sendo que na acção principal tem de ser ainda possível voltar atrás – trataremos esta questão aqui no blog num futuro próximo).


Espero que estas linhas gerais possam compreender melhor a nova configuração do contencioso administrativo, e a própria organização do CPTA! E mim ajudou-me bastante…
Bom estudo,
Filipa Lemos Caldas


[1] A noção de “actos definitivos e executórios” foi, ao abrigo da regulamentação anterior, muito estudada pela doutrina. Assim, seria executório um acto eficaz, que produzisse efeitos. Por sua vez, um acto deveria ser, de acordo com Freitas do Amaral, triplamente definitivo:
a.     Horizontalmente definitivo, isto é, deveria corresponder ao acto final, no procedimento administrativo;
b.     Verticalmente definitivo, isto é, proveniente do órgão máximo da hierarquia; e
c.     Materialmente definitivo, isto é, deveria estabelecer uma resolução jurídica para um caso da vida.
Parece claro que este critério era muito mais exigente do que o actual, sendo que a maioria dos actos não poderia ser objecto de recurso contencioso. Assim, por exemplo, um acto intermédio poderá ser impugnado desde que produza efeitos externos.
[2] Note-se que também é possível fazê-lo de modo incidental, ao impugnar actos administrativos, desaplicando a norma no caso concreto. Mas não é numa acção administrativa especial sobre normas.
[3] Estes três casos concretos podem resultar de decisões proferidas em acções nos termos do art. 73.º/2 ou por via incidental.

segunda-feira, 28 de março de 2011

Contencioso da Responsabilidade civil extracontratual do Estado por facto ilícito resultante da omissão do legislador: crítica à solução da lei n.º 67/2007, de 31 de Dezembro


§ 1.º Apresentação do problema
O princípio da responsabilidade civil do Estado é o resultado de um longo processo de sedimentação valorativa da vida sócio-política, cujas raízes se perdem no tempo[1]. Apesar de hoje não se contestar a responsabilidade da Administração e de se aceitar a responsabilidade do Estado pelo exercício da função jurisdicional, algumas reservas persistem acerca do alcance razoável da responsabilidade pelo exercício da função legislativa e sobre o modo de a concretizar[2].
Pretendemos questionar o alcance e limites do contencioso da responsabilidade do Estado por facto ilícito resultante da omissão do legislador e analisar se este regime é inteiramente coerente com a “letra e o espírito” da reforma da Justiça Administrativa[3].
O ordenamento jurídico português delimita a competência dos tribunais administrativos e fiscais em função da natureza das relações jurídicas em causa (art. 212.º, n.º 3, CRP e 1.º, n.º 1, ETAF), completando esta cláusula geral com uma enumeração exemplificativa, que concretiza os tipos de situações susceptíveis de ser enquadrados no contencioso administrativo. Situamo-nos, sem dúvida, no campo da jurisdição administrativa. Assim o determina o art. 4.º, n.º 1, al. g) do ETAF[4].
Porém, uma aceitação generalizada e sem limites de uma obrigação de indemnizar pode constituir um encargo financeiro muito pesado e obrigar o legislador a renunciar à satisfação de necessidades sociais porventura mais prementes e a consignar parte da sua receita ao pagamento de indemnizações[5]. Por isso, é da maior importância esclarecer em que termos se deverá concretizar o dever de indemnizar, sem nunca esquecer, como nota Jorge Miranda, que a responsabilidade é uma decorrência da força normativa da Constituição[6].

§ 2.º Evolução histórica da responsabilidade civil do Estado: breve nota
No Estado absoluto, vigorava o princípio “the king can do no wrong”[7], i.e., o poder público era considerado irresponsável pelos prejuízos que provocasse aos particulares[8]. Para tal, terá contribuído a noção romana de potestas, a fundamentação divina do poder e a concepção hobbesiana de soberania[9]. Este princípio da irresponsabilidade passou para o direito administrativo do liberalismo oitocentista, em resultado das preocupações fundamentais com a subtracção da administração aos esquemas igualitários do direito privado e devido à afirmação da sua supremacia perante os particulares. Difundiu-se a ideia de que “é próprio da soberania impor-se a todos sem compensação”[10].
É certo, como sublinha Jorge Miranda[11], que as nossas Constituições do século XIX consagraram a responsabilidade dos empregados públicos por “erros do ofício e abusos de poder” (arts. 14.º e 17.º da Constituição de 1822), “abusos e omissões que praticarem no exercício das suas funções” (art. 145.º, §§ 27.º e 28.º da Carta) ou “abuso ou omissão pessoal” (arts. 15.º e 26.º da Constituição de 1838) e também dos juízes por “abusos de poder e erros” (art. 196.º da Constituição de 1822) ou “abuso de poder e prevaricações” e “suborno, peita, peculato e concussão” (arts. 123.º e 124.º da carta). No entanto, como salienta o Autor, não se tratava propriamente de responsabilidade do Estado.
Também o Código de Seabra, de 1867, ressaltava a regra da irresponsabilidade do Estado[12], com excepção da responsabilidade por erro judiciário (art. 2403.º). A regra era atenuada com a ideia, veiculada pela jurisprudência e pela doutrina, de que apenas valia para a actuação do poder público com autoridade, ou seja, para actuações no âmbito da gestão pública[13]. Porém, em 1930, com a revisão do Código de Seabra, e com o Código Administrativo de 1936, foi estabelecida a responsabilidade do Estado e das autarquias, solidariamente com os seus funcionários, por actos ilegais por si praticados dentro das respectivas competências. O princípio da responsabilidade do Estado surge, assim, estritamente ligado aos actos administrativos ilegais, se bem que, com o DL 48051, de 21 de Novembro de 1967, se passou a prever responsabilidade civil delitual e pelo risco. A Constituição de 1933 consagrava o direito de “reparação de toda a lesão efectiva conforme dispuser a lei”. Porém, este princípio foi quase sempre interpretado como dirigindo-se contra os particulares, e não contra o Estado.
O grande passo no sentido de um Estado responsável foi dado pela Constituição de 1974[14] e pela lei n.º 67/2007, de 31 de Dezembro[15], que instituiu o Regime da responsabilidade civil extracontratual do Estado e demais entidades públicas[16]-[17].    

§3.º Responsabilidade por actos legislativos? O ultrapassar da polémica.
Uma concepção muito ampla e exigente do dever de indemnizar do legislador apresenta o perigo de “desvirtuamento funcional da lei” como instrumento normativo de uma decisão política. Ao exercício da função normativa está inerente uma margem de discricionariedade e de possibilidade de escolha de meios alternativos. Dentro de certos limites, justifica-se o sacrifício patrimonial de interesses individuais como consequência normal do risco que qualquer pessoa deve suportar a título de contrapartida da sua integração numa comunidade política organizada[18]. A “exigência de optimização dos direitos fundamentais”, nomeadamente por parte do legislador, não equivale necessariamente a qualquer autorização ao Tribunal Constitucional – ou aos demais tribunais – para substituir o Legislador em caso de omissão[19].
Por esse motivo, Maria Lúcia Amaral defendeu a inexistência de responsabilidade civil do Estado, por prejuízos causados por actos da função legislativa. A Autora afirma que a inconstitucionalidade da lei não se configura como um ilícito civil. Assim, mesmo que a lei ofenda direitos, liberdades e garantias de um particular, não há omissão de um comportamento devido que vincule o Legislador perante o lesado[20]. Existirá apenas um dever de indemnizar do legislador que se constitui à margem dos mecanismos da responsabilidade civil, em virtude da imposição, no património de particulares, de sacrifícios graves e especiais em nome da prossecução do bem comum.
De acordo com esta concepção, a responsabilidade por factos ilícitos do legislador iria criar um controlo de constitucionalidade atípico, não previsto pela Constituição, que colidira com a reserva de jurisdição que é atribuída ao Tribunal Constitucional, nos termos do art. 221.º, reserva que é exercida com a colaboração activa dos restantes tribunais, nos termos do art. 204.º. quando se certifica da reunião dos pressupostos da responsabilidade, o juiz que é chamado a condenar ou absolver o Estado numa acção de indemnização procede à qualificação jurídica dos factos, o que é diferente das situações em que participa activamente no controlo da constitucionalidade, desaplicando uma lei que reputa constitucional ou aplicando lei cuja inconstitucionalidade foi suscitada durante o processo. Neste último caso, o juiz resolve uma estrita questão de direito[21].
Acompanhamos Jorge Miranda na crítica que faz à Autora[22]. De facto, o primado da Constituição deveria implicar uma relevância acrescida da violação das normas constitucionais, com consequência na responsabilidade. Uma lei ofensiva de direitos, liberdades e garantias tem necessariamente de corresponder à omissão de um comportamento devido que vincule o legislador. O primado da Constituição não tem apenas uma vertente objectiva, não podendo desligar-se da garantia dos direitos fundamentais. Assim, ao contrário do defendido, não é necessário falar-se num direito à constitucionalidade. Basta atender-se a cada direito. Por outro lado, os cidadãos portugueses têm acesso directo ao controlo da constitucionalidade através da fiscalização difusa (art. 204.º).
Por fim, da circunstância de ordenamentos próximos do nosso não consagrarem a responsabilidade por actos legislativos ilícitos não pode retirar-se a inadmissibilidade da responsabilidade. Não poderíamos supor que, tal como em 1911 com a fiscalização judicial difusa, Portugal seria pioneiro neste campo?[23] Aliás, neste sentido foi o RRCEEP, ao consagrar, no art. 15.º, a responsabilidade por actos legislativos que causem “danos anormais aos direitos e interesses legalmente protegidos dos cidadãos”.
Já quanto à responsabilidade por actos lícitos, as leis expropriatórias, i.e., que impusessem sacrifícios graves e especiais em nome da prossecução do bem comum, só seriam conformes à Constituição se incluíssem uma cláusula indemnizatória destinada a compensar o sacrifício imposto. Ou seja, a indemnização não seria uma consequência da ilicitude, mas, sim, um pressuposto da admissibilidade da restrição constitucional de um direito[24]. O Tribunal Constitucional apenas poderia vir a arbitrar o pagamento de compensações em dois casos: quando a omissão se tenha devido a erro de prognose do legislador e, por isso, seja impossível declarar a inconstitucionalidade da lei, ou nos casos em que essa declaração não seja suficiente para eliminar todo o sacrifício imposto ao património privado em consequência da lei inconstitucional[25]. A inconstitucionalidade da lei não seria um ilícito civil, capaz de geral uma obrigação de ressarcir. Parece-nos que se a lei expropriatória negar a indemnização ou for discriminatória, haverá inconstitucionalidade por acção. Porém, se nada previr, deverá aplicar-se directamente o art. 22.º[26].

§4.º O caso Aquaparque
Exemplar, é a este respeito, o caso Aquaparque. Recorde-se, muito brevemente, o caso. Em Julho de 1993, duas crianças desapareceram das instalações do Aquaparque do Restelo, vindo a ser encontradas mortas nas tubagens do parque. Uma acção cível contra o Estado português foi proposta um ano depois pelos pais de uma das crianças (Julho de 1994) e o Ministério Público viria a acusar a administração do Aquaparque pelo crime de homicídio por negligência (Novembro de 1994). A acção contra o Estado fundamentava-se na omissão da aprovação da legislação sobre parques aquáticos, que só em Março de 1997 seria aprovada. Em Abril de 2000 terminou o julgamento cível, tendo o Estado sido condenado ao pagamento de uma indemnização no valor de 120 mil contos.
Porém, o Estado português recorreu da decisão, invocando a falta de nexo de causalidade entre a omissão da legislação sobre parques aquáticos e as mortes. Não obstante o argumento, o Tribunal da Relação de Lisboa manteve a condenação com fundamento no incumprimento do dever de protecção dos direitos fundamentais: apesar de ter reduzido a indemnização para metade, considerou “que a ausência de legislação sobre parques aquáticos não se mostrou de todo indiferente para a produção do dano, mas foi uma das condições que concorreu para a sua produção”, pronunciando-se pela ilicitude da omissão e pelo preenchimento dos pressupostos da responsabilidade civil extracontratual (Acórdão RCb. 7/5/2002, Proc. n.º 0035211)[27]. O Ministério Público recorreu para o Supremo Tribunal de Justiça, contestando, novamente, a existência de nexo de causalidade. Antes de o STJ decidir, o caso acabou, porém, por ser encerrado por acordo extrajudicial.

§5.º Críticas à solução do art. 15.º, n.º 5 do RRCEEP
A dependência, nos termos do art. 15.º, n.º 5, do RRCEEP, da responsabilidade do Estado da existência de um “certificado prévio”[28] do Tribunal Constitucional, i.e., de uma declaração de inconstitucionalidade por omissão, parece-nos bastante criticável.
Em primeiro lugar, a ilicitude que fundamenta a responsabilidade civil não se confunde com a inconstitucionalidade. Rui Medeiros, é certo, parece equiparar a ilicitude à inconstitucionalidade, mas apenas para com isso simplificar a linguagem, como expressamente reconhece[29]. A omissão do legislador não envolve necessariamente a violação directa da Constituição ou dos princípios nela consignados. O dever jurídico violado pode constar de normas infraconstitucionais ou de normas da União Europeia[30].
Por outro lado, o art. 15.º, n.º 5, do RRCEEP também não contempla o dever de protecção dos direitos fundamentais. Esta dimensão dos direitos fundamentais autonomizou-se pelo reconhecimento de que estes direitos não se resumem a direitos de defesa que impõem proibições (“Abwehrrechte”), mas também importam uma função protectora, de imperativo de tutela (“Schutzgebot”), designadamente impondo deveres de protecção às entidades públicas e, em particular, ao Estado[31]. Assim, o Estado está obrigado a assegurar um nível mínimo adequado de protecção dos direitos fundamentais, sendo responsável pelas omissões legislativas que não assegurem o cumprimento dessa imposição genérica[32].
Parece-nos que este artigo constitui uma violação do princípio da tutela jurisdicional efectiva (art. 20.º). A exigência de uma declaração de inconstitucionalidade não é, certamente, um pressuposto acrescido de constituição em responsabilidade civil. O Estado é já responsável independentemente dessa declaração, simplesmente ela é necessária para que se possa propor a acção. Ou seja, o art. 15.º, n.º 5 do RRCEEP impõe um novo pressuposto processual no contencioso da responsabilidade civil.
No fundo, o particular fica numa posição de menor tutela depois da Lei n.º 67/2007, de 31 de Dezembro. Se, por exemplo, o caso Aquaparque se tivesse colocado depois da entrada em vigor do RRCEEP, a responsabilidade do Estado só poderia ter sido efectivada se previamente tivesse existido uma declaração de inconstitucionalidade por omissão. Ora, os nove anos que intermediaram a proposição da acção e a decisão final seriam ainda prolongados pela necessidade de uma decisão do Tribunal, que, note-se, não costuma ser muito célere.
De extrema importância é, também, considerar que a legitimidade activa para o pedido de fiscalização da inconstitucionalidade por omissão é muito limitada: cabe apenas ao Presidente da República, ao Provedor de Justiça e aos presidentes das Assembleias Legislativas das regiões autónomas, com fundamento em violação de direitos das regiões autónomas (art. 283.º). Assim, um particular que queira efectivar o seu direito a uma indemnização terá de apresentar uma queixa ao Provedor de Justiça (art. 23.º, n.º 1), que terá, depois, legitimidade activa em sede de fiscalização. 
No fundo, este artigo é uma verdadeira cláusula de exclusão de responsabilidade. O Estado concede a si próprio uma isenção de responsabilidade, em violação do art. 22.º. Esta solução não se pode compreender, tanto mais que o art. 22.º é directamente aplicável (art. 18.º, n.º 1) e vincula as entidades públicas[33].

            §6.º Propostas de alteração
            A solução do art. 15.º, n.º 5 só poderia, eventualmente, ser aceite se se acrescentasse ao art. 283.º uma segunda via de subida ao Tribunal, a título de incidente. De facto, consideramos, que se deveria reforçar os direitos dos cidadãos e criar, em futura revisão constitucional, mecanismos de fiscalização concreta de inconstitucionalidade por omissão[34].
            Não aceitamos, portanto, a tese de Jorge Pereira da Silva[35], que defende que o art. 204.º faculta aos tribunais o poder de apreciar a falta de uma norma legislativa imposta pela Constituição. Para o Autor, a omissão geraria uma norma implícita contrária à Constituição que os tribunais deveriam não aplicar. Assim, aceita genericamente a fiscalização concreta da inconstitucionalidade por omissão. Parece-nos, porém, que este raciocínio vai para lá do sentido da Constituição.
            Por isso, consideramos, de jure condito, que o art. 15.º, n.º 5, do RRCEEP é inconstitucional por violação dos arts. 22.º e 20.º e que os tribunais deverão, com esse fundamento, desaplicá-lo. Haverá, neste caso, recurso obrigatório para o Tribunal Constitucional (art. 280.º, n.º 3). O particular conseguirá, assim, ver satisfeito o seu direito a uma indemnização, decorrente directamente do art. 22.º, verdadeiro “pilar” do Estado de Direito, como salienta Vasco Pereira da Silva[36]. Até lá, o actual regime consagra um contencioso imperfeito e sem possibilidade de concretização efectiva.



[1] Assim o nota Maria da Glória Garcia, A responsabilidade civil do Estado e demais pessoas colectivas públicas, Lisboa, 1997, p. 9.
[2] Cf. Jorge Miranda, Manual de Direito Constitucional, tomo IV, Direitos Fundamentais, 4.ª ed., Coimbra, 2008, p. 351.  
[3] Afirmando, em termos genéricos, que não o é, cf. Vasco Pereira da Silva, O Contencioso AAdministrativo no Divã da Psicanálise. Ensaio sobre as acções no novo processo administrativo, 2.ª ed., Coimbra, 2009, p. 517.
[4] Note-se que o art. 4.º, n.º 2, al. a) do ETAF não é obstáculo à subsunção desta matéria à jurisdição administrativa, já que este artigo está construído para casos de impugnação de actos e não de responsabilidade civil. Sobre a interpretação do art. 4.º, n.º 1, al. g) do ETAF e a sua eventual extensão a actos de gestão privada, cf. Vieira de Andrade, A Justiça Administrativa, 11.ª ed., Coimbra, 2011, pp. 103 ss.; Mário Aroso de Almeida, Manual de Processo Administrativo, Coimbra, 2010, pp. 168 ss.  
[5] Cf. Diogo Freitas do Amaral/ Rui Medeiros, “Responsabilidade civil do Estado por omissão de medidas legislativas. O caso Aquaparque”, em RDES, ano XLI (XIV da 2ª série), n.os 3 e 4, Ago.-Dez., 2000, pp. 299-383, em especial, p. 341.
[6] A par da invalidade da lei inconstitucional. Cf. Jorge Miranda, “Responsabilidade do Estado pelo exercício da Função Legislativa – breve síntese”, em Responsabilidade civil extra-contratual do Estado. Trabalhos preparatórios da reforma, Coimbra, 2002, pp. 185-191, em especial, p. 188. Assim, o princípio consagrado no art. 22.º é assumido constitucionalmente como instrumento fundamental de protecção dos particulares num Estado de Direito. Neste sentido, cf. Jorge Miranda/ Rui Medeiros, Constituição Portuguesa Anotada, tomo 1, 2ª ed., Coimbra, 2010, p. 472.    
[7] Este princípio veio, mais tarde, a dar origem a uma transferência de responsabilidade, concretizada na ideia “the King can’t act alone”.
[8] Cf. Marcelo Rebelo de Sousa/ André Salgado de Matos, Responsabilidade Civil Administrativa. Direito Administrativo Geral, Tomo III, Lisboa, 2008, pp. 12 ss.
[9] Thomas Hobbes parte de uma visão muito pessimista sobre a natureza humana e vê no Estado, que resulta de um contrato social que envolveu a alienação para um soberano do direito de cada homem e governar a si próprio, a solução para a paz e o bem comum de um colectividade. O Estado teria como finalidade evitar que a sociedade, vivendo no seu “estado de natureza”, se destruísse. Hobbes considera que a autoridade do Estado se fundamenta no terror ou no medo que inspira aos súbditos. O poder soberano era absoluto e ilimitado. Cf. Thomas Hobbes, Leviathã ou matéria: forma e poder de um Estado eclesiástico e civil, trad. João Paulo Monteiro/ Maria beatriz Nizza da Silva, Lisboa, 1995, pp. 150 e ss; Paulo Otero, Instituições Políticas e Constitucionais, vol. I, Lisboa, 2007, pp. 319 ss.
[10] Cf. Marcelo Rebelo de Sousa / André Salgado Matos, Responsabilidade…, cit., p. 12. Apenas se admitia a responsabilização dos funcionários administrativos a título estritamente pessoal. Porém, mesmo esta responsabilidade exigia autorização superior, em virtude do sistema de garantia administrativa, que vigorou na Alemanha até 1879, em França até 1873 e em Espanha até 1869. 
[11] Manual…, cit, pp. 345 ss; Jorge Miranda, “A Constituição e a responsabilidade civil do Estado”, em Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor Rogério Soares, Coimbra, 2001, pp. 927-939.
[12] O art. 2399.º determinava que “os empregados públicos, de qualquer ordem ou graduação que sejam, não são responsáveis pelas perdas e danos que causem no desempenho das obrigações que lhe são importas por lei, excepto se excederem ou não cumprirem, de algum modo, as disposições da mesma lei”. O art. 2400.º acrescentava que “se os ditos empregados, excedendo as suas atribuições legais, praticarem actos, de que resultem para outrem perdas e danos, serão responsáveis do mesmo modo que os simples cidadãos”. 
[13] Cf. Maria da Glória Garcia, A responsabilidade…, cit., p. 17.
[14] Jorge Miranda, “A originalidade e as principais características da Constituição”, em Estudos de Direito Constitucional em homenagem à Profa. Maria Garcia, São Paulo, 2007, pp. 161-188, em especial, p. 168, nota que atribuição ao cidadão lesado a faculdade de pedir a cessação das causas de violação e a respectiva indemnização são uma nota de originalidade da Constituição de 1976.
[15] No plano da responsabilidade civil administrativa o diploma não introduziu alterações tão revolucionárias como na responsabilidade civil do Estado por actos da função jurisdicional e político legislativa.
[16] Doravante, RRCEEP.
[17] A falta de concretização legal do art. 22.º tinha-se, na verdade, tornado num silêncio “crescentemente ruidoso”, como afirma Carla Amado Gomes, “A responsabilidade civil extracontratual da administração por facto ilícito. Reflexões avulsas sobre o novo regime da Lei 67/2007, de 31 de Dezembro”, em Três textos sobre o novo regime da responsabilidade civil extracontratual do Estado e demais entidades públicas, Lisboa, 2008, pp. 25-59. Ora, isto é especialmente grave se considerarmos que o art. 22.º é um direito de natureza análoga à dos direitos, liberdades e garantias do título I, pelo que terá a sua fonte ética da dignidade da pessoa. No sentido de que os direitos, liberdades e garantias e os direitos económicos, sociais e culturais têm a sua fonte na dignidade de todas as pessoas, cf. Jorge Miranda, “A dignidade da pessoa humana e a unidade valorativa do sistema de direitos fundamentais”; em Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor Martim de Albuquerque, vol. I, 2010, pp. 933-949, em especial, p. 935.
[18] Cf. Maria Luísa Duarte, A cidadania da União e a responsabilidade dos Estados-Membros por violação do Direito Comunitário, Lisboa, 1994, pp. 77 e 78.
[19] Cf. João Loureiro, O procedimento administrativo entre a eficiência e a garantia dos particulares: algumas considerações, Coimbra, 1995, p. 235.
[20] Cf. Maria Lúcia Amaral, “A responsabilidade do Estado-legislador: Reflexões sobre uma reforma”, em A Responsabilidade Civil Extracontratual do Estado. Trabalhos preparatórios da reforma, Ministério da Justiça (Gabinete de Política Legislativa e Planeamento), Coimbra, 2002, pp. 217-231
[21] Cf. Maria Lúcia Amaral, “A responsabilidade…, cit., p. 225.
[22] Cf. Jorge Miranda, Manual de Direito Constitucional, tomo IV, 3.ª ed., Coimbra, 2000, p. 298.
[23] A interrogação é de Jorge Miranda, Manual…, cit., 3.ª ed., p. 299.
[24] Cf. Maria Lúcia Amaral, “A responsabilidade…, cit., p. 227.
[25] Cf. Maria Lúcia Amaral, “Dever de legislar e dever de indemnizar. A propósito do caso «aquaparque do Restelo»”, em Themis, ano 1, n.º 2, 2000, pp. 67-98, em especial, pp. 82 ss. 
[26] Concordamos, portanto, com Jorge Miranda, Manual…, cit., p. 359.
[27] Maria Lúcia Amaral, Dever de legislar cit., 92 ss. defendeu a não responsabilidade do Estado no caso Aquaparque, essencialmente com o fundamento de que “só haveria uma boa e bem fundada razão para não deixar de contar com a emissão de lei se se provasse que o afastamento do perigo teria que ser tarefa exclusiva do legislador – isto é, se se provasse impossível a auto-protecção eficiente dos privados (proprietários e consumidores) em relação aos riscos conhecidos. Como é evidente, tal prova da impossibilidade não pode ser feita”. O Tribunal não aceitou – e bem – o argumento, explicando que “para que haja causa adequada, não é de modo nenhum necessário que o facto, só por si, sem a colaboração de outros, tenha produzido o dano; essencial é que o facto seja condição do dano, mas nada obsta a que, como frequentemente sucede, ele seja apenas uma das condições desse dano”. 
[28] A expressão é de Miguel Bettencourt da Câmara, A certificação prévia do Tribunal Constitucional na acção de responsabilidade civil por omissão legislativa: alguns efeitos substantivos e processuais, tese de mestrado inédita.
[29] Cf. Rui Medeiros, Ensaio…, cit., p. 166.
[30] Na verdade, a aplicação do art. 15.º do RRCEEP às acções e omissões legislativas em violação do Direito da União Europeia revela-se altamente problemática. Embora o legislador tenha inserido referência à responsabilidade do Estado por emissão de diplomas em desconformidade com o Direito Comunitário (originário e derivado) no n.º 1 do art. 15.º, a conjugação com o n.º 2 reduz o padrão de desconformidade, deixando de fora, por exemplo, os regulamentos e as directivas. Neste sentido, cf. Carla Amado Gomes, “As novas responsabilidades dos tribunais administrativos na aplicação da lei 67/2007, de 31 de Dezembro”, em Três textos sobre o novo regime da responsabilidade civil extracontratual do Estado e demais entidades públicas, Lisboa, 2008, pp. 95-139, em especial, p. 128.
[31] Cf. Paulo Mota Pinto, “O direito ao desenvolvimento da personalidade”, em Portugal-Brasil, 2000, p. 189.
[32] Cf. Vieira de Andrade, Os direitos fundamentais na Constituição portuguesa de 1976, Coimbra, 2010, p. 144.
[33] Cf. Jorge Miranda, “A responsabilidade…, cit., p. 187. Jorge Miranda, “O sistema português de direitos fundamentais – Brevíssima nota”, em Revista de Direito Público, ano 1, n.º 1, Janeiro/ Junho, 2009, pp. 129-137, em especial, p. 135, aponta o princípio da eficácia jurídica dos direitos fundamentais como um “princípio comum com diferenciação”.
[34] Cf. Jorge Miranda, Ideias para uma revisão constitucional em 1996, Lisboa, 1996, pp. 29-30; Jorge Miranda, Manual…, IV, cit., p. 362; Jorge Miranda, Manual de Direito Constitucional, tomo VI, 3ª ed., Coimbra, 2008, p. 331.
[35] Dever de legislar e protecção jurisdicional contra omissões legislativas, Lisboa, 2003, pp. 171 ss. e 318.
[36] O Contencioso…, cit., p. 516.