segunda-feira, 16 de maio de 2011

Pressupostos Processuais Da Impugnação De Actos Administrativos


            Na nossa ordem jurídica, verificou-se, com a reforma do Contencioso Administrativo, um duplo alargamento da noção tradicional do acto administrativo, já que, por um lado, cabem no âmbito da jurisdição administrativa as actuações unilaterais de órgãos de outros poderes estaduais (art. 4/1 al. c) do ETAF, que fala em “actos materialmente administrativos”), por outro lado, também são de considerar como tal as actuações dos particulares colaborando com a Administração no exercício da função administrativa (art. 4/2 al. d) do ETAF ), para além, como é óbvio, das actuações da Administração Pública sob a forma privada.
            O CPA adoptou uma noção ampla e “aberta” de acto administrativo, que compreende toda e qualquer decisão destinada à produção de “efeitos jurídicos numa situação individual e concreta” (vide art. 120.º). Tanto as actuações agressivas como as prestadoras ou as infra-estruturais são consideradas pela lei como actos administrativos. Portanto, os actos administrativos impugnáveis tornaram-se, hoje em dia, uma realidade de contornos muito amplos, que compreende não apenas as decisões administrativas finais e “perfeitas”, criadoras de efeitos jurídicos novos, como também aquelas actuações administrativas imediatamente lesivas de direitos dos particulares, que tanto podem ser actos intermédios como decisões preliminares, ou simples actos de execução. Por tudo isto, são de afastar, entre nós, noções restritivas de acto administrativo, seja ao nível substantivo, seja ao nível processual. Actos administrativos são todos os que produzam efeitos jurídicos mas, de entre estes, aqueles cujos efeitos forem susceptíveis de afectar, ou causar uma lesão a outrem, são “contenciosamente” impugnáveis.
            Tão importante é esta abertura da noção processual de acto administrativo, que o legislador constituinte lhe atribuiu mesmo natureza de direito fundamental, incluindo expressamente a faculdade de impugnar quaisquer actos administrativos susceptíveis de lesar posições subjectivas dos particulares no próprio conteúdo do direito de acesso à justiça administrativa (art. 268/4 CRP).
            Se se atentar na noção de acto administrativo, pressuposta e adoptada pelo legislador da reforma do Contencioso Administrativo, pode-se dizer que ela apresenta, em relação às concepções tradicionais, dois tipos de transformações, externas (i.e., determinadas pelas opções globais em matéria de processo) e internas (resultantes da própria modificação de acto, em si mesma), sendo que as mais importantes são estas últimas, e no âmbito das quais podemos destacar:
a)      O alargamento da impugnabilidade dos actos administrativos, que passa a ser determinada em razão da eficácia externa e da lesão dos direitos dos particulares (art. 51/1 CPTA), desta forma se dando cumprimento ao disposto no art. 268/4 CRP, que consagrou um modelo de Justiça Administrativa predominantemente subjectiva, mas que, complementarmente, assume uma função de tutela da legalidade e do interesse público. Por isso, Vasco Pereira da Silva concorda com a solução material adoptada pela CRP, ao referir-se a actos com eficácia externa e a actos lesivos, dependendo o critério da impugnabilidade da função e da natureza da acção de impugnação, havendo que distinguir consoante:
1)     Se tratar de uma acção para a tutela de um direito do particular em face da Administração, caso em que o meio processual de impugnação assume uma função predominantemente subjectiva e, nesse caso, o critério da impugnabilidade é determinado pela lesão dos direitos dos particulares;
2)     Ou caso se trate de uma acção para defesa da legalidade e do interesse público, em que a função do meio processual é predominantemente objectiva, e, então, a recorribilidade do acto depende da sua eficácia externa.
Mas, se a solução é correcta, a formulação do n.º 1 do art. 51.º CPTA está algo infeliz, pois ela parece dar a entender que o critério mais amplo é o da eficácia externa, facto que é expressamente contrariado pelo regime jurídico consagrado pelo Código, que prevê a impugnação de actos desprovidos de eficácia externa (art. 54.º), desde que lesivos.
b)     A extensão da impugnabilidade decorrente da possibilidade de apreciação dos actos procedimentais. O que implica a relevância jurídica autónoma do procedimento e o abandono de uma qualquer ideia de “definitividade horizontal” dos actos administrativos como critério de impugnabilidade. Assim, os actos de procedimento são susceptíveis de impugnação autónoma (art. 51/1 CPTA). E a não impugnação do acto de procedimento não preclude a possibilidade de impugnar a decisão “final com fundamento em ilegalidades cometidas ao longo do procedimento” (art. 51/3).
c)      A possibilidade de controlo judicial imediato dos actos de subalternos, afastando-se expressamente toda e qualquer exigência de recurso hierárquico necessário (art. 51/1) que, na opinião de Vasco Pereira da Silva, era uma figura ferida de inconstitucionalidade (nomeadamente por violar o princípio da plenitude da tutela dos direitos dos particulares e o princípio da separação entre a Administração e a Justiça, entre outros).
Para Vasco Pereira da Silva, o CPTA afasta inequívoca e definitivamente a “necessidade” de recurso hierárquico, como pressuposto de impugnação contenciosa dos actos administrativos, através das seguintes disposições:
- Consagração da impugnabilidade contenciosa de qualquer acto administrativo que seja susceptível de lesar direitos ou interesses legalmente protegidos dos particulares ou que seja dotado de eficácia externa (art. 51/1 CPTA);
- Atribuição de efeito suspensivo do prazo de impugnação contenciosa do acto administrativo à utilização de garantias administrativas (art. 59/4), o que significa conferir uma maior eficácia à utilização dessas garantias. Assim, da perspectiva do particular, passa a poder valer a pena solicitar previamente uma “segunda opinião” por parte da Administração, não vendo precludido o seu direito de impugnação contenciosa pelo decurso do prazo;
- Estabelecimento da regra segundo a qual, mesmo nos casos em que o particular utilizou previamente uma garantia administrativa e beneficiou de consequente suspensão do prazo de impugnação contenciosa, isso não impede a possibilidade de impugnação contenciosa do acto administrativo (art. 59/5 CPTA). Todas as garantias administrativas passaram a ser, portanto, “facultativas”, delas deixando de depender o acesso ao juiz.

Mas, se é pacífico afirmar que “O CPTA não exige, em termos gerais, que os actos administrativos tenham sido objecto de prévia impugnação administrativa para que possam ser objecto de impugnação contenciosa” (Mário Aroso de Almeida), tende agora a surgir uma interpretação restritiva deste regime jurídico, segundo a qual se estaria apenas aqui perante uma revogação da regra geral da exigência de recurso hierárquico necessário, constante do CPTA, mas que ela não implicaria a revogação de eventuais regras especiais, que consagrassem tal exigência, quando existissem, nem afastaria a possibilidade de estabelecimento de similares exigências em lei especial. Para Mário Aroso de Almeida, “na ausência de determinação legal expressa em sentido contrário, deve entender-se que os actos administrativos com eficácia externa são imediatamente impugnáveis perante os tribunais administrativos sem necessidade de prévia utilização de qualquer via de impugnação administrativa. As decisões administrativas continuam, no entanto, a estar sujeitas a impugnação administrativa necessária, nos casos em que isso esteja expressamente previsto na lei, em resultado de uma opção consciente e deliberada do legislador, quando este a considere justificada”.

Vasco Pereira da Silva não acompanha esta visão restritiva, na medida em que lhe parece contrariar tanto as disposições constitucionais como o regime jurídico consagrado no CPTA, e cuja justificação lhe parece residir mais em considerações de política legislativa do que em argumentos estritamente jurídicos. Este professor aponta, designadamente, as seguintes razões: não faz sentido considerar que se mantém a exigência da via administrativa prévia se se consagra sempre a possibilidade de impugnação contenciosa imediata das decisões administrativas; porque não faz sentido que a revogação da “regra geral” não tenha implícita a revogação de todas as outras normas que se limitavam a reiterar o mesmo regime jurídico; o modo mais correcto de entender as normas que continuam a prever a existência de garantias contenciosas administrativas necessárias não tem a ver com revogação, mas sim com caducidade destas últimas, por falta de objecto; é uma “missão impossível” justificar, nomeadamente, que, depois da concretização legislativa do direito fundamental de acesso à Justiça Administrativa, mediante a consagração da regra da desnecessidade de impugnação administrativa prévia ao acesso ao juiz, pudessem existir excepções a um tal regime; o próprio CPTA, concretizando o direito fundamental de acesso ao Contencioso Administrativo (do art. 268/4 CRP) estabelece um princípio de “promoção do acesso à justiça” (art. 7.º Código), segundo o qual o “mérito” deve prevalecer sobre as “formalidades”, o que implica, entre outros corolários, a regra segundo a qual devem ser evitadas “diligências inúteis” (art. 8/2 Código).

De tudo o que fica dito, resulta que o CPA permite a imediata impugnação dos actos administrativos praticados pelos subalternos, afastando a exigência de recurso hierárquico necessário. Sendo agora necessário que o legislador, tendo em conta a CRP e o novo regime processual, proceda à “harmonização” das disposições do CPA e demais legislação avulsa, nomeadamente daquelas que ainda procedem à distinção entre recurso hierárquico necessário e facultativo (arts. 166.º e ss. CPA), em termos que não mais se justificam.
Para Vasco Pereira da Silva, a solução mais adequada, para compatibilizar os regimes jurídicos do procedimento e do processo, passaria pela revogação expressa das disposições que prevêem o recurso hierárquico necessário (por uma questão de certeza e segurança jurídicas, uma vez que deve-se considerar que elas já caducaram), ao mesmo tempo que procedesse à generalização da regra de atribuição de efeito suspensivo a todas as garantias administrativas.
Trata-se de uma solução que permitiria satisfazer todos os interesses relevantes em presença: o do particular, que passava a ter um estímulo acrescido para utilizar as garantias administrativas; o da Administração, que passaria a gozar, em termos mais alargados, de uma “segunda oportunidade”, para melhor cumprir a legalidade e realizar o interesse público; e o do bom funcionamento do sistema de justiça administrativa, pois o eficaz funcionamento das garantias administrativas poderia servir de “filtro” a litígios susceptíveis de ser preventivamente resolvidos.

Entretanto, e enquanto não sobrevier a intervenção do legislador do procedimento, deve-se entender que caducam todas as normas que prevejam a “necessidade” de recurso hierárquico, ou de qualquer outro meio gracioso, pelo que todas as garantias administrativas são de considerar como facultativas, no sentido de que não impedem o particular de utilizar imediata, ou simultaneamente, a via contenciosa, além de possuírem um efeito suspensivo dos prazos de impugnação contenciosa. Mas enquanto não sobrevier a intervenção do legislador do procedimento, deve-se considerar que o particular lesado por um acto administrativo de um subalterno, que preenchesse a previsão do anterior recurso hierárquico necessário, pode optar por uma de três coisas:
- intentar, desde logo, a acção administrativa especial, acompanhada ou não do respectivo pedido cautelar de suspensão de eficácia do acto administrativo;
- proceder à prévia impugnação hierárquica que, para além do efeito geral de suspensão do prazo de recurso contencioso, deve continuar a gozar, neste caso, de efeito suspensivo da execução do acto administrativo e, só depois, em função do resultado, utilizar ou não a via contenciosa;
- impugnar hierarquicamente a decisão administrativa, que goza do referido efeito de suspensão de eficácia, mas tendo ainda a possibilidade de aceder imediatamente a tribunal, sem ter necessidade de esperar pela decisão do recurso hierárquico.
d) A sindicabilidade de actos administrativos que, sendo jurídicos, não são necessariamente de definição do direito.
e) A delimitação do âmbito de impugnabilidade em razão da eficácia e já não da executoriedade dos actos administrativos.
            Outros pressupostos processuais são a legitimidade e a oportunidade
            O CPTA, nos seus preceitos iniciais, para além das referidas regras relativamente aos elementos do processo, contém também disposições referentes aos pressupostos processuais específicos do Contencioso Administrativo, e comuns a todos os meios processuais, nomeadamente a legitimidade (arts. 9.º e ss.), o patrocínio judiciário (art. 11.º), a competência do tribunal (arts. 13.º e ss.). Se parece correcta esta opção de estabelecer regras e princípios comuns respeitantes aos pressupostos processuais do Contencioso Administrativo, menos adequado parece ser o facto de a lei não ter procedido a uma diferenciação efectiva do que era comum e do que era especial, acabando por repetir, a propósito de cada um dos meios processuais, o que já antes tinha deixado dito em termos gerais.
            No que respeita à legitimidade que, do ponto de vista da teoria do processo, constitui o elo de ligação entre a relação jurídica substantiva e a processual, destinando-se a trazer a juízo os titulares da relação material controvertida -, o Código contém ainda uma Subsecção II (Da Legitimidade), a propósito da acção administrativa especial qualificada em razão do pedido de impugnação, onde se estabelece um regime “especial” que estipula regras relativas à “legitimidade activa” (art. 55.º) e aos “contra-interessados” (art. 57.º), para além da questão (que, em rigor, não é de legitimidade) da “aceitação do acto” (art. 56.º).
            Procurando elaborar uma tipologia, nos termos do art. 55.º CPTA, há que considerar as seguintes categorias de actores processuais:
1.      Os sujeitos privados, que actuam para a defesa de interesses próprios, mediante a alegação da titularidade de posições subjectivas de vantagem, e que podem ser:
a)      Os indivíduos (art. 55/1 al. a)), que possuem um “interesse directo e pessoal” na demanda, o qual resulta da alegação da titularidade de um direito subjectivo (art. 9/1 CPTA). A alegação da qualidade de parte, que aqui está em causa, engloba tanto os denominados direitos subjectivos, como os interesses legítimos e os interesses difusos;
b)     As pessoas colectivas privadas (art. 55/2 al. b));
2.      Os sujeitos públicos (arts. 55/2 als. b) e e) CPTA), sendo de incluir nesta categoria tanto as pessoas colectivas públicas como os órgãos administrativos;
3.      O actor popular. Refira-se que a lei parece considerar aqui duas modalidades de acção popular:
a)      A genérica (art. 55/1 al. f)), que remete para o art. 9/2 CPTA, e que engloba particulares e pessoas colectivas actuando, de forma objectiva, para a defesa da legalidade e do interesse público, “independentemente de possuírem interesse directo na demanda”.
b)     A de âmbito autárquico (art. 55/2), segundo a qual “a qualquer eleitor, no gozo dos seus direitos civis e políticos, é permitido impugnar as deliberações adoptadas por órgãos de autarquias locais sediadas na circunscrição onde se encontre recenseado”. Vasco Pereira da Silva entende que a previsão da “acção popular correctiva” caducou, em face da “acção popular genérica”, já que esta última goza de requisitos de admissibilidade mais amplos e que forçosamente absorvem os anteriores.
4.      O Ministério Público, que é titular do direito de acção pública (também) no Contencioso Administrativo, cabendo-lhe actuar, a título institucional, para a defesa da legalidade e do interesse público.
Referente à legitimidade é também o art. 57.º CPTA (contra-interessados), que qualifica como sujeitos processuais os particulares  dotados de “legítimo interesse” na manutenção do acto administrativo ou, dito de outra forma, que são “directamente prejudicados” pelo provimento do pedido de impugnação. Estes particulares são verdadeiros sujeitos de relações jurídicas administrativas multilaterais.
Ao considerar que, nos processos de impugnação, os sujeitos da relações multilaterais, com interesses coincidentes com os da autoridade autora do acto administrativo, são obrigatoriamente chamados a intervir no processo, o CPTA está a “abrir” o Contencioso Administrativo à protecção desses direitos impropriamente chamados de “terceiros”.
É de lamentar a ausência de tratamento, ao nível das regras gerais, da posição dos “impropriamente chamados terceiros”, assim como o facto de, no que respeita aos processos impugnatórios, não existir uma regulação mais detalhada na sua participação.
Por último, a aceitação do acto administrativo surge regulada ao lado de questões de legitimidade (vide o art. 56.º CPTA) quando, em rigor, se trata de algo totalmente diferente.
Delimitando-se a legitimidade processual em razão da alegação da titularidade de direitos, não faz sentido continuar a reconduzir a aceitação do acto a uma questão de legitimidade. Pelo que, das duas uma, ou se considera que a aceitação do acto administrativo constitui um “pressuposto processual autónomo, diferente da legitimidade e do interesse em agir” (Vieira de Andrade), ou se reconduz tal aceitação à falta de interesse processual. Da perspectiva de Vasco Pereira da Silva, e acompanhando Vieira de Andrade na separação da aceitação do acto o pressuposto da legitimidade, não há qualquer vantagem em autonomizar a aceitação como pressuposto autónomo, antes lhe parecendo mais adequado a recondução da questão ao interesse em agir, em termos similares ao processo civil.
Pressuposto processual específico da modalidade de impugnação da acção administrativa especial é o da oportunidade do pedido. Assim, o art. 58.º CPTA estabelece os prazos de impugnação do acto administrativo, consagrando um prazo de três meses, sempre que se trate de acção para a defesa de interesses próprios ou de acção popular, e um prazo de um ano, se se tratar de uma acção pública (n.º 2 do referido art.). Trata-se de um prazo substantivo e não processual que segue o regime dos prazos de propositura de acções do Processo Civil (n.º 3 do referido art.).
No art. 58/4 CPTA prevê-se a possibilidade de alargamento do prazo de impugnação até um ano, se existirem motivos relevantes, caso “se demonstre, com respeito pelo princípio do contraditório, que, no caso concreto, a tempestiva apresentação da petição não era exigível a um cidadão diligente”, pelos motivos enunciados nas diversas alíneas deste número.
Também no que se refere à contagem de prazos se estabelece, no art. 59/1 CPTA, que aquele só corre “a partir da data da notificação, ainda que o acto tenha sido objecto de publicação obrigatória” (também nºs 2 e 3 o mesmo artigo).
Concluindo é de referir ainda, que o CPTA não impede o tribunal de conhecer, a título incidental, da ilegalidade de um acto administrativo (art. 38 nºs 1 e 2 CPTA).
Jerónimo Kopke Túlio
Aluno nº : 16317

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