quinta-feira, 19 de maio de 2011

Deferimento tácito - PARTE 1


O deferimento tácito surge numa época, baseado no modelo francês, onde o contencioso- regra se consubstanciava no recurso de anulação de actos administrativos, de base claramente objectivista.[1] Hoje com a dogmática da Administração Prestadora, sob o símbolo do Estado Social, a sua actuação é dirigida sob o princípio da tutela judicial efectiva e por isso a figura da anulação foi substituída pela da condenação. Deste modo os particulares podem recorrem aos tribunais administrativos cada vez que virem a sua posição jurídica afectada. Surge uma multiplicidade de meios para aceder ao sistema jurisdicional, onde a anulação não chega tendo de ser completada pela condenação para a prática de acto devido.[2]
O indeferimento tácito surgiu como uma figura que pretendia conceder aos particulares um acto da Administração para que estes pudessem pedir a sua impugnação contenciosa e assim pedir a real actuação da Administração (modelo inspirado no contencioso administrativo de tipo francês, centrado no recurso da anulação de actos administrativos). Ou seja, estávamos perante uma “ficção legal” ou uma “presunção legal”[3], pois a lei extrai da conduta da inércia da Administração um efeito jurídico de como tivesse sido praticada qualquer acção pela Administração. O indeferimento tácito não provocava quaisquer efeitos substantivos uma vez que este só servia para “abrir a porta” do recurso contencioso. Esta figura vem prevista no art. 109º do CPA.
Actualmente tal figura já não faz sentido com o surgimento da figura da condenação da Administração para a prática de acto legalmente devido (art. 46º, n.º 2, al. b) do CPTA), uma vez que já não faz depender o acesso à jurisdição administrativa da existência de uma acto administrativo passível de impugnação. Assim deixa de ser necessário ficcionar, em situações de pura inércia ou omissão, a existência de actos administrativos. A partir de agora, passados os prazos legais, a inércia da Administração passa a ser fundamento para um mero facto constitutivo de interesse em agir em juízo para obter uma decisão judicial de condenação à prática do acto ilegalmente omitido. Por estas razões Vasco Pereira da Silva e Mário Aroso de Almeida defendem a revogação tácita do n.º 1 do art. 109º do CPA, na parte que presume o indeferimento da pretensão para poder exercer a respectiva impugnação do acto[4].
No art. 108º vem, no entanto, os casos de deferimento tácito, onde há uma presunção legal de um acto da Administração em sentido positivo. O art. 108º apresenta as situações onde pode ocorrer um deferimento tácito. O não preenchimento do art. 108º implica a aplicação do art. 109º do CPA, que dita a regra de indeferimento tácito. Perante a nova figura de condenação da Administração para a prática de acto legalmente devido pergunta-se se o deferimento tácito vem incluído no conceito de omissão da Administração. Atente-se que no anteprojecto do CPTA, no seu art. 82º, al. a), previa-se somente uma situação de omissão no caso do indeferimento tácito[5][6]. Para Mário Aroso de Almeida não é uma situação de omissão porque estamos perante a produção de um acto que resulta da lei. Este Autor levanta a hipótese de quando se estiver perante um caso de deferimento tácito o particular, se tiver interesse processual, pode pedir a condenação da  Administração ao reconhecimento de que o acto tácito se produziu, através de uma acção administrativa comum, conforme o disposto no art. 39º do CPTA. A posição deste Autor tem por base que o deferimento tácito é igual à prática de um acto por parte da Administração. Isto não é verdade. Antes de mais o argumento apresentado de que se está perante uma produção de um acto que resulta da lei também pode ser aplicado ao indeferimento tácito, o que os põe no mesmo patamar. Logo não existiriam diferenças entre eles, não se justificando a sua não inclusão no conceito de omissão. Para além disto, não se pode equiparar o deferimento tácito de um de um acto praticado pela Administração porque este instituto apesar de garantístico apresenta enormes falhas de protecção. Vasco Pereira da Silva vai de encontro com esta posição ao distinguir o deferimento tácito de uma actuação intencional e materializada da Administração[7].
 João Tiago da Silveira apresenta algumas criticas ao deferimento tácito, como de ser propiciador para a adopção de comportamento ilícitos, de ser uma figura atentatória de interesses públicos e particulares, de entregar a competência decisória administrativa para os particulares, de conduzir a vícios no funcionamento da Administração causando dificuldades na sua execução e de – mais importante – conduzir à falta de segurança para os particulares. Este Autor tenta ultrapassar estes problemas demonstrando que o deferimento tácito é um instituto de cariz transitório, que existe somente para satisfazer os pedidos feitos pelos particulares, que a Administração é incapaz de cumprir atempadamente.
Perante os factos apresentados julgo que os riscos para a vida em sociedade que advém do deferimento tácito poderão suplantar as desvantagens inerentes à demora na tomada de decisão por parte da Administração. Não nos podemos esquecer que também existem outros meios jurídicos para reparar os danos causados  ao particular pela inércia administrativa, como, por exemplo, a responsabilidade civil.
Após o apresentado, julgo ser defensável que com qualquer deferimento tácito seja possível a propositura de uma acção de condenação da Administração à prática de acto legalmente devido. Vasco Pereira da Silva apresenta algumas limitações à propositura de uma acção de condenação à prática de acto devido, derivada de um deferimento tácito, em princípio favorável ao particular. As hipóteses são quando as pretensões do deferimento tácito não correspondam na integra às do particular e quando haja uma relação jurídica multilateral, onde o deferimento tácito seja só favorável para alguns particulares[8].
Não adoptando a posição de Vasco Pereira da Silva, pode-se argumentar que isto vai encher os tribunais com acções (inúteis). Isto pode ser verdade a curto prazo, mas a longo prazo deixaria de o ser porque a Administração deixaria de utilizar os actos tácitos como prática recorrente. Isto serviria para ensinar a Administração a ser eficiente.


[1] Cfr. José carlos Vieira de Andrade, A Justiça Administrativa (Lições), 2.ª Edição, Almedina, Coimbra, 1999, cit., p. 49
[2] Cfr. Rita Calçada Pires, O pedido de Condenação à Prática de Acto Administrativo Legalmente Devido, Desafiar a Modernização Administrativa?, Almedina, Coimbra, 2004, cit., pp. 21 e 22
[3] Cfr. Mário Aroso de Almeida, O Novo Regime do Processo nos Tribunais Administrativos, 3.º Edição, Almedina, Coimbra, 2004, cit., p. 200
[4] Cfr. Vasco Pereira da Silva, O Contencioso Administrativo no Divã da Psicanálise, Ensaio sobre as acções no novo processo administrativo, 2.º Edição, Almedina, Coimbra, 2009, cit., p. 397
[5] Cfr. Rita Calçada Pires, O pedido de Condenação..., cit., p. 73
[6] O legislador não tomou essa posição e teve o cuidado de não referir a palavra “silêncio” ( veja-se os arts. 69º, n.º 1, e 79º, n.º 5) e de não se referir a situações de inércia ou omissão da Administração quando se menciona a palavra “indeferimento” (nos arts. 69º, n.º 2, e 79º, n.º 4), significando sim puros actos da Administração.
[7] Cfr. Vasco Pereira da Silva, O Contencioso Administrativo no Divã ..., cit., p. 398
[8] Cfr. Vasco Pereira da Silva, O Contencioso Administrativo no Divã ..., cit., p. 400

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