sábado, 16 de abril de 2011

Contencioso da Responsabilidade civil extracontratual do Estado por facto ilícito resultante da omissão do legislador: Parte II

No post anterior (http://contenciososubturma7.blogspot.com/search/label/Madalena%20Perestrelo%20de%20Oliveira) critiquei a solução do art. 15.º, n.º 5, do RRCEEP e defendi que os tribunais tinham um dever de desaplicar este preceito. Neste post, desenvolvo a ideia e analiso as outras possíveis reacções do juiz face a um pedido de responsabilidade civil por omissão legislativa, sem que seja apresentado o certificado prévio do Tribunal Constitucional, i.e., uma declaração de inconstitucionalidade por omissão legislativa.
            Note-se que, qualquer que seja a solução adoptada neste campo, terá sempre de ter em vista a realização máxima do direito a uma justa indemnização (art. 22.º da Constituição), mas também a necessidade de conjugar a celeridade processual com o prazo de prescrição do direito ao ressarcimento. Na verdade, o acórdão do STA, de 11.03.2009[1], pronunciou-se pela aplicabilidade do prazo de prescrição previsto no art. 498.º do CC à responsabilidade extracontratual do Estado. Assim, importa que a solução defendida no campo processual seja apta a ser conjugada com o prazo de prescrição de 3 anos, previsto no art. 498.º, n.º 1, do CC[2].
            A questão que se coloca é a de saber como deve reagir o juiz titular de um processo onde corre uma acção de responsabilidade civil cuja causa de pedir assenta em omissão legislativa, mas em relação à qual o autor não apresente o certificado prévio de inconstitucionalidade do TC.
            Miguel Bettencourt da Câmara[3] apresenta cinco possíveis vias de análise da questão: (i) despacho de indeferimento liminar, (ii) despacho de suspensão da instância, (iii) absolvição do réu do pedido, (iv) absolvição do réu da instância, (v) desaplicar a norma do art. 15.º, n.º 5, do RREEP, com fundamento em inconstitucionalidade e desconformidade face ao direito da União Europeia. 
Situamo-nos num campo onde se nota com especial intensidade a estreita relação que se estabelece entre o direito substantivo e o direito processual. Como nota Rui Medeiros[4], o problema da responsabilidade civil dos poderes públicos é também, em certa medida, um problema de jurisdição e de poderes dos tribunais.
A primeira possibilidade apresentada foi a de o juiz a quo estar obrigado a proferir um despacho de indeferimento liminar. Se é certo que a eliminação ab initio de processos que não reúnam as condições mínimas de viabilidade favorece, em princípio, a economia processual, também é verdade que a imposição de uma intervenção liminar necessária do juiz em todos os processos conduz a incomportáveis congestionamentos no fluxo processual[5]. Assim, a possibilidade de existência de um despacho liminar manteve-se apenas na justiça cautelar (art. 116.º CPTA)[6]. O CPTA adoptou a regra da oficiosidade das diligências destinadas à citação, que já tinha sido introduzida em 1995, para o processo declarativo comum, na lei processual civil (art. 234.º CPC). Aliás, as situações de indeferimento liminar encontram-se tipificadas nas alíneas a) a e), do n.º 4, do art. 234.º CPC, para as quais remete o art. 234.º-A, n.º 1, aplicáveis à acção administrativa comum ex vi arts. 1.º e 42.º CPTA.
A única possibilidade de existência de despacho de indeferimento liminar será naqueles casos, excepcionais, em que exista uma providência cautelar associada a uma acção de indemnização[7]. I.e., se existir um pedido de arbitramento de uma reparação provisória (art. 112.º, n.º 2, al. e), CPTA)[8].  
Em segundo lugar, deverá também ponderar-se a possibilidade de suspensão da instância (art. 279.º CPC, ex vi arts. 1.º e 42.º CPTA).  
O n.º 1, do art. 279.º CPC concede ao tribunal o poder de ordenar a suspensão da instância quando a decisão da causa estiver dependente do julgamento de outra já proposta, i.e., quando estiver pendente uma causa prejudicial. Mas será a acção de declaração de inconstitucionalidade por omissão uma acção prejudicial? Parece-me que apenas poderia ser como tal configurada caso o particular tivesse legitimidade activa para o pedido de fiscalização da constitucionalidade (art. 283.º CRP)[9], já que a suspensão só pode ser ordenada se, no momento do despacho, a acção prejudicial estiver efectivamente proposta[10]. Ora, não tendo o particular legitimidade para o pedido de fiscalização, não deverá sujeitar-se a uma suspensão da instância.
Assim, teremos de ponderar dois cenários distintos:
(i)                 Não está pendente um pedido de fiscalização de inconstitucionalidade por omissão, porque o Provedor de Justiça ainda não o formulou. Neste caso, não há lugar à aplicação do art. 279.º, n.º 1, CPC, que exige que a decisão da causa esteja dependente do “julgamento de outra já proposta”. Não podendo existir suspensão da instância, a acção avançará para uma eventual absolvição do réu do pedido ou da instância, consoante se considere o certificado prévio do TC um pressuposto de natureza processual ou substantiva. Ora, semelhante entendimento resultará numa violação do direito a uma tutela judicial efectiva (art. 20.º CRP)[11].   

Sempre se poderia argumentar que, nestes casos, enquanto não tivesse existido um pedido de fiscalização da constitucionalidade, o particular não deveria intentar a acção de responsabilidade civil. I.e., exigir-se-ia ao particular que esperasse pela iniciativa processual do Provedor de Justiça. Porém, como já foi referido, a solução defendida no campo processual não poderá ser alheia aos seus efeitos substantivos. Ora, enquanto não existir “qualquer acto que exprima, directa ou indirectamente, a intenção de exercer o direito” (art. 323, n.º 1, CC), o prazo de prescrição continua a correr. Assim sendo, não se pode exigir ao particular que espera, ad aeternum, pela iniciativa processual do Provedor de Justiça, correndo o risco de ver o seu direito a uma indemnização prescrever. Na verdade, não sendo o pedido de fiscalização perante o Tribunal Constitucional intentado pelo particular, não parece que a iniciativa do Provedor de Justiça possa resultar na interrupção do prazo de prescrição, beneficiando o particular. Assim, apenas a acção de pedido de indemnização por este intentada será apta a interromper o prazo de prescrição.

(ii)               No segundo cenário equacionado, existiria já um pedido de fiscalização da constitucionalidade. Neste caso, poderá ser aplicado o art. 279.º, n.º 1, CPC. É perante estes casos que se deve questionar se deverá existir uma suspensão da instância. Parece-me que a resposta deverá ser negativa. De facto, essa é a solução que melhor respeita o princípio de prevalência das decisões de mérito vigente no nosso Contencioso Administrativo, que tem subjacente razões de economia processual. O art. 7.º CPTA consagra o princípio pro actione, determinando que, em caso de dúvida, os tribunais têm o dever de interpretar as normas processuais num sentido que favoreça a emissão de pronúncia sobre o mérito das pretensões formuladas[12].

Note-se, porém, que nos casos em que esteja em causa um pressuposto que visa a protecção directa de um interesse público, a sua falta, para Teixeira de Sousa[13], tornaria inadmissível o conhecimento do mérito da acção. Esta solução vai, aliás, no sentido do art. 660.º, n.º 1, que determina que a sentença conhece, em primeiro lugar, as questões processuais que possam determinar a absolvição da instância. Já quanto aos restantes pressupostos processuais – que não visem a protecção directa de um interesse público, mas apenas de interesses das partes –, seria admissível o conhecimento do mérito da causa, apesar da falta do pressuposto. São casos em que o dogma da apreciação prévia dos pressupostos processuais não é operante.

Porém, no caso em análise temos de reconhecer a dualidade da natureza da declaração de inconstitucionalidade do TC. Ainda que seja um pressuposto de acesso aos tribunais, não se pode negar que apresenta também uma forte componente material ou substantiva. Verifica-se, portanto, uma consumpção do pressuposto pelo mérito: a averiguação do pressuposto processual depende de um elemento integrante do mérito da causa. I.e., o mesmo facto é relevante para aferir o pressuposto e o mérito[14], o que leva a que deva existir uma prevalência da decisão de mérito.

Assim, o juiz deve agir ao abrigo do princípio do inquisitório (art. 265.º CPC), de forma a que o dever de indemnizar, previsto no art. 15.º, n.º 5, RRCEEP, não seja esvaziado na sua aplicação prática, até porque o legislador já beneficia de um limite negativo à constituição da responsabilidade por omissão legislativa: a verificação de danos anormais (art. 15.º, n.º 3, RRCEEP).

            A terceira via de solução passível de ser adoptada pelo juiz seria a de absolver o réu do pedido. Esta solução implica uma qualificação do certificado prévio do TC como um pressuposto substantivo do direito de accionar o Estado ou, ainda, uma requalificação do requisito ilicitude. Já me pronunciei supra pela natureza necessariamente mista da declaração de inconstitucionalidade do TC. Ainda assim, importa referir por que esta solução não seria adequada. Não conceder ao particular uma indemnização por falta de uma declaração de inconstitucionalidade, que o particular não tem legitimidade activa para promover, seria, em primeiro lugar, uma violação do princípio da autonomia do instituto da responsabilidade civil e do direito fundamental a uma justa indemnização (art. 22.º CRP). Consubstanciaria, ainda, uma violação do princípio da tutela judicial efectiva, implicando uma diluição da responsabilidade civil no mecanismo da fiscalização da constitucionalidade por omissão. Por fim, iria contra a aplicabilidade directa (art. 18.º, n.º 1, CRP) de que é dotado o art. 22.º CRP[15].  
            Argumento determinante seria, também, o facto de a decisão de absolvição do pedido formaria caso julgado, impossibilitando o particular, que venha a obter decisão de inconstitucionalidade por omissão legislativa do TC, de voltar a pedir o ressarcimento.  
            Deve ser ainda equacionada a possibilidade de absolvição do réu da instância. Naturalmente, esta posição só fará sentido para quem defenda que a necessidade de certificado prévio do TC é um pressuposto processual. Para aqueles que adoptem uma tese substantiva, não existirá possibilidade de absolvição da instância, mas apenas do pedido, porque não faltará qualquer pressuposto processual.
            De qualquer forma, a jurisprudência do TC é contrária a esta solução. No acórdão do TC n.º 45/99 diz-se que o legislador ordinário, embora possa definir os meios processuais necessários ao exercício do direito à reparação dos danos previstos no art. 22.º CRP, não pode criar entraves ou dificuldades dificilmente superáveis. Ora, sendo que o lesado não pode autonomamente diligenciar no sentido da regularização da falta deste pressuposto, porque não tem legitimidade activa para tal, a falta de declaração de inconstitucionalidade será uma excepção dilatória dificilmente suprível. Assim sendo, este pressuposto processual não deveria ter sido criado pelo legislador.
            Face ao exposto, resta optar pela existência de um dever de o juiz desaplicar oficiosamente a norma constante do art. 15.º, n.º 5, RRCEEP, com fundamento na sua inconstitucionalidade, como defendido no post anterior.




[1] Proc. n.º 0463/08, 2ª Subsecção do Contencioso Administrativo, disponível em www.dgsi.pt.
[2] Este prazo poderá ser mais longo se o facto ilícito constituir crime (art. 498.º, n.º 3, do CC). Porém, este prazo não será aplicável a casos de responsabilidade civil por omissão do dever de legislar porque não parecem configuráveis situações de omissões que constituam ilícito penal.
[3] A certificação prévia do Tribunal Constitucional na acção de responsabilidade civil por omissão legislativa: alguns efeitos substantivos e processuais, tese de mestrado inédita.
[4] Responsabilidade Civil dos Poderes Públicos – Ensinar e Investigar, Lisboa, 2005, p. 55.
[5] Cf. Mário Aroso de Almeida/ Carlos Cadilha, Comentário ao Código de Processo nos Tribunais Administrativos, Coimbra, 2005, p. 585.
[6] A haver despacho liminar, justifica-se que seja em processos como os cautelares, que são processos urgentes.
[7] A possibilidade é apresentada por Miguel Bettencourt da Câmara, A certificação…, cit.
[8] Este pedido é uma manifestação de tutela cautelar de situações jurídicas instrumentais, dinâmicas ou pretensivas, que exigem a adopção de providências antecipatórias. Assim, cf., Mário Aroso de Almeida, Manual de Processo Administrativo, Coimbra, 2010, p. 446 ss.
[9] Defendi no post anterior a inadmissibilidade, de jure condito, de uma fiscalização concreta da inconstitucionalidade por omissão. Nesse sentido, cf. a argumentação do post anterior.
[10] Cf. José Lebre de Freitas/ João Redinha/ Rui Pinto, Código de Processo Civil Anotado, vol. 1.º, Coimbra, 2008, p. 544.
[11] Este argumento é desenvolvido quando se equaciona a possibilidade de existir absolvição da instância ou do pedido.
[12] Cf. Mário Aroso de Almeida/ Carlos Cadilha, Comentário…, cit., p. 58.
[13] Estudos sobre o novo Processo Civil, Lisboa, 1997, cit., p. 84.
[14] Cf. Miguel Teixeira de Sousa, “Sobre o sentido e a função dos pressupostos processuais. Algumas reflexões sobre o dogma da apreciação prévia dos pressupostos processuais na acção declarativa”, ROA 49 (1989), pp. 118 ss.
[15] Estes argumentos são apresentados por Miguel Bettencourt da Câmara, A certificação…, cit.

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