quinta-feira, 28 de abril de 2011

O âmbito orgânico da justiça administrativa: a jurisdição administrativa



1 – Introdução
Organicamente, a justiça administrativa compreende exclusivamente a resolução das questões de direito administrativo que sejam atribuídas à ordem judicial dos tribunais administrativos.
Este critério não teria relevância se houvesse uma correspondência biunívoca entre justiça materialmente administrativa e jurisdição administrativa. Isto é, a relevância do critério orgânico para a determinação do âmbito da justiça administrativa depende da não atribuição, à jurisdição administrativa, da competência de conhecer de todas as questões de direito administrativo.
Portanto, resta-nos saber qual o alcance da definição material da justiça administrativa. A resposta será encontrada numa primeira fase ao nível constitucional, contudo esta não será categórica pelo que teremos de encontrar o âmbito da jurisdição administrativa também ao nível da legislação ordinária que regula a competência dos tribunais administrativos e ainda legislação especial que podem conter atribuições ou subtracções a essas competências comuns. 

2 – Alcance da reserva constitucional da jurisdição administrativa
Num primeiro momento coloca-se a questão da interpretação do artigo 212º/3 da CRP – “ compete aos tribunais administrativos e fiscais o julgamento das acções e recursos contenciosos que tenham por objecto dirimir os litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais ”.
Importa saber se existe no preceito uma reserva material absoluta de jurisdição atribuída aos tribunais administrativos, no sentido de saber se os (1)tribunais administrativos podem julgar questões de direito administrativo e (2)se eles as podem julgar.
(1) A doutrina tem admitindo a atribuição legal aos tribunais administrativos da resolução de litígios referentes à actividade Administrativa, ainda que estes respeitassem a relações ou incluíssem aspectos de direito privado – tais como competência para julgar acções sobre contratos privados da Administração ou para julgar acções de responsabilidade civil extracontratual por actos de gestão privada da Administração.
Compreende-se tal posição uma vez que se tem vindo a verificar um fenómeno de miscigenação do direito público com o direito privado e há, portanto, uma necessidade de assegurar o respeito pelos princípios públicos em toda a actuação administrativa.
(2) Quanto a saber se só eles – tribunais administrativos – podem julgar questões de direito administrativo, as opiniões da doutrina divergem.
Para uns, resulta da Constituição uma reversa perante a qual o legislador não pode atribuir a outros tribunais o julgamento de litígios materialmente administrativos, (só se admitindo as devoluções de competências em matéria administrativa para outros tribunais que forem previstas pela Constituição).
Outros autores propõem uma posição mitigada, admitindo portanto a remissão do legislador para a “jurisdição comum” de questões resultantes de relações jurídicas administrativas, sobretudo se estivem em causa direitos fundamentais dos cidadãos assegurando deste modo uma protecção processual mais intensa desses direitos. Isto explica-se face às dificuldades da jurisdição administrativa por falta de meios e insuficiente número de tribunais.
Havia ainda a posição já ultrapassada do Conselho Consultivo da Procuradoria-Geral da República que distinguia contencioso por natureza – que seria exclusivo dos tribunais administrativos – de contencioso por atribuição ou acidental – que seria susceptível de ser conferido aos tribunais comuns.
A posição mais razoável parece ser a da jurisprudência acolhida pelo STA, Tribunal de Conflitos e Tribunal Constitucional.
Esta não lê o preceito constitucional como um imperativo estrito, que contem uma proibição absoluta, mas como uma regra definidora de um modelo típico, susceptível de adaptações e desvios.
O preceito visava, historicamente, consagrar a ordem judicial administrativa como uma jurisdição autónoma e ordinária, deixando de se considerar os tribunais administrativos como tribunais facultativos.
O preceito não será mais do que uma “cláusula geral”, uma garantia institucional, das quais deriva a obrigação, para o legislador ordinário, de respeitar o núcleo essencial da organização material das jurisdições. 
Concretizando, fica proibida a descaracterização da jurisdição administrativa, mas não está vedada a hipótese de atribuição pontual a outros tribunais do julgamento de questões substancialmente administrativas – esta atribuição deve incluir-se na margem de escolha política e de liberdade constitutiva própria do poder legislativo.
Uma interpretação rigorosa do preceito constitucional levaria à inconstitucionalidade de leis importantes e de práticas de longa tradição, ou seja, implicaria uma revolução que só deveria verificar-se se tivesse sido inequivocamente assumida pela revisão constitucional.
Em suma, o preceito visa consagrar os tribunais administrativos como tribunais comuns em matéria administrativa.
Ainda que se optasse pela existência de uma reserva material absoluta de jurisdição administrativa, o critério orgânico não perderia importância, pois é a própria Constituição que atribui a outros tribunais o julgamento de questões emergentes de relações jurídicas administrativas. Vejamos:
·         É atribuída à jurisdição constitucional competência em matéria administrativa as questões eleitorais e a fiscalização abstracta da constitucionalidade das normas administrativas;
·         Não cabe à justiça administrativa as questões suscitadas em matéria de legalidade financeira da actuação pública, esta cabe ao Tribunal de Contas – 214º CRP;
·         Consideram-se, ainda, constitucionalmente atribuídas as questões relativas à interpretação das normas comunitárias à jurisdição de tribunais internacionais – tais como o Tribunal de Justiça ou o Tribunal de Primeira Instância. 

3 – A delimitação legal do âmbito da jurisdição administrativa:
A par de normas que visam concretizar o conteúdo da cláusula geral erigida pela Constituição, há que tomar em conta os preceitos que diminuem o âmbito da jurisdição administrativa e aqueles que ampliam, por atribuição, a sua jurisdição.

 3.1 – O âmbito da jurisdição administrativa segundo o ETAF – lei n.º 13/2002 de 19 de Fevereiro:
A cláusula geral, contida no artigo 1º, define a competência substancial dos tribunais administrativos, identificando-a com os litígios emergentes das relações jurídicas administrativas.
No entanto, entendeu determinar a competência da jurisdição administrativa por recurso a enumerações.
Temos uma enumeração positiva e outra negativa, estas correspondem aos litígios cuja solução compete ou não aos tribunais administrativos. Tal não significa, contudo, que não subsistam quando ao âmbito de jurisdição, por diversas razões:
·         Ou porque as enumerações são exemplificativas;
·         OU porque é impossível prever todos os litígios;
·         Ou porque estas utilizam conceitos que carecem de precisão;
·         Ou ainda porque não prejudicam a existência de legislação especial divergente.
Entende-se que a enumeração positiva é, normalmente, concretizadora da cláusula geral da Constituição, mas pode ser considerada aditiva quando visa atribuir competências que não caberiam à partida no âmbito definido pela cláusula geral.
Já a enumeração negativa é, em parte, concretizadora da cláusula geral e delimitadora do âmbito substancial da jurisdição, mas pode ainda ter um carácter e um efeito subtractivo do âmbito da cláusula geral.

3.1.2 – Artigo 4º/1 da ETAF:
A generalidade das alíneas do artigo 4º/1 visa apenas a concretização positiva do conceito de “litígios emergentes de relações jurídicas administrativas”, não levantando por isso grandes problemas. (excepção de parte das alíneas b), e), g) e h))
  Importa, contudo, fazer algumas observações:
·         O conteúdo das alíneas deve entender-se delimitado em função da cláusula geral do artigo 1º/1, isto é, só cabem aos tribunais administrativos no âmbito das relações jurídicas de direito administrativo, etc. (ex: a); f) e j));
·         Há ainda uma preocupação legal de delimitação do âmbito da jurisdição através da referência aos “poderes administrativos” e ao regime de “direito público” naquelas alíneas que possam abranger também actos praticados por sujeitos privados (ex: d); e); f) e i));
·         Presume-se a assunção de um conceito material de actividade administrativa quando, na alínea c), se inclui os litígios decorrentes das actuações materialmente administrativas de órgãos estaduais ou regionais que não pertençam à Administração Pública em sentido orgânico;
·         As várias alienas compreendem um duplo sentido: por um lado – enunciam as hipóteses mais importantes de litígios; por outro lado – tornam mais clara a competência dos tribunais administrativos relativamente a casos que lhes tinham sido ou parecia terem sido subtraídos (ex: a); l); n)).

3.1.2.1 – Matéria dos Contratos e Responsabilidade e o alargamento da jurisdição administrativa presente na cláusula geral:
·         Contratos:
·           Confere-se aos tribunais administrativos a competência para verificar a invalidade de quaisquer contratos, quando esta seja consequência directa da invalidade do acto administrativo em que se fundou a sua celebração.
Há um efeito directo, uma relação substancial adequada de causalidade entre as duas invalidades – isto significa que se atribui a competência para conhecer da invalidade, ainda que apenas derivada, de certos contratos privados (ex: b));
·           Atribui-se à jurisdição administrativa os litígios que tenham por objecto a interpretação, validade e execução de contratos, mesmo que puramente privados, desde que estejam submetidos a um procedimento pré-contratual regulado por normas de direito público (ex: c));
·           Parece delimitar-se a jurisdição administrativa pela natureza administrativa do contrato, em função do objecto (passível de acto administrativo) ou do critério estatutário (com cláusulas exorbitantes) (ex: f)).
·         Responsabilidade civil extracontratual:
·                   Atribui-se expressamente aos tribunais administrativos o julgamento das questões relativas à responsabilidade civil extracontratual pelos danos causados no exercício da função jurisdicional e legislativa – isto constitui uma adição ao âmbito de jurisdição administrativa (alínea g)).
        Esta contudo só é aditiva, na função jurisdicional, no que respeita a erros judiciários, pois a responsabilidade pelos danos resultantes do funcionamento da administração da justiça envolve a resolução de questões de direito administrativo, que já antes se entendia que competiam aos tribunais administrativos;
        Inclui-se ainda na competência dos tribunais administrativos o conhecimento das acções de responsabilidade por danos causados pelos actos de natureza administrativa relativos ao inquérito e à instrução criminais e ao exercício da acção penal – apesar da impugnação desses actos caber apenas aos tribunais judiciais (4º/2/c)).
       Levantam-se dúvidas relativas à aplicação da alínea h), no que respeita à responsabilidade dos titulares dos órgãos legislativos e dos magistrados, uma vez que há que ter em conta a irresponsabilidade dos deputados (157º/1 CRP) e a limitação da responsabilidade externa dos magistrados. Contudo, não se põe em causa o direito de regresso do Estado em caso de dolo ou culpa grave.
·                  Passa a competir à jurisdição administrativa a resolução de litígios que tenham por objecto a responsabilidade das pessoas colectivas de direito público pelos danos decorrentes da sua actividade de gestão privada.
       Este alargamento é muito discutido pela doutrina:
       À primeira vista não haverá nenhum impedimento para que os tribunais administrativos sejam competentes para conhecer da responsabilidade das pessoas colectivas de direito público por actos de gestão privada. Porém, tal não é expressamente afirmado pelo preceito.
       A seu favor pode-se invocar o elemento histórico e a circunstância do ETAF deixar de excluir expressamente o conhecimento de questões de direito privado.
       Contudo, se interpretarmos de forma estrita a cláusula geral do artigo 1º, na dúvida prevaleceria a regra geral de competência, carecendo as adições de serem expressamente determinadas. Acresce ainda a alínea i), a limitação do conhecimento pelos tribunais administrativos das acções de responsabilidade de sujeito privados. Nestes se parecem incluir os entes privados de “mão pública” (ou “falsos privados”) e os privados que exercem poderes públicos (ex: concessionários).
       Entende-se, portanto, que há-de ser a jurisprudência a determinar se houve ou não alargamento e em que medida.
·                   Resta saber se a jurisdição administrativa abrange apenas as questões da responsabilidade por actos funcionais ou também por actos pessoais dos titulares dos órgãos, funcionários, etc.
        Só pode conhecer das questões de responsabilidade civil por actos praticados pelos servidores públicos em conexão com o exercício de funções administrativas.
·                   Estas alterações legislativas não significam que estas questões enunciadas passam a ser exclusivamente reguladas pelo direito administrativo, mas, sim, que os tribunais administrativos passam a aplicar também, a título principal, normas de direito privado.

3.1.3 – Definição negativa do âmbito da jurisdição (artigo 4º do ETAF):
Alguns preceitos limitam-se a concretizar a cláusula geral, esclarecendo quais as questões que não são litígios emergentes de relações de direito administrativo.
Preceitos delimitadores: n.º 2 e n.º 3 – excluem questões relativas a actos de outras funções estaduais e questões de direito privado em matéria de emprego.
·           Alínea a) do n.º 2 – exclui da jurisdição administrativa a impugnação de actos praticados no exercício das funções política e legislativa;
·           Alíneas b) do n.º 2 – os tribunais administrativos não apreciam litígios que tenham por objecto a impugnação de decisões jurisdicionais de tribunais de outras ordens jurídicas (independência das jurisdições);
·           Alínea a) do n.º 3 – exclui a apreciação de acções de responsabilidade por erro judiciário desses outros tribunais;
·           Alínea d) do n.º 3 – exclui a apreciação de litígios emergentes de contratos individuais de trabalho, quando o empregador seja uma pessoa colectiva de direito público.
Outros preceitos têm o alcance de restringir o âmbito de jurisdição administrativa. São os preceitos subtractivos – retiram à jurisdição administrativa a competência para conhecer certas questões de direito administrativo.
·           Alínea c) do n.º 2 – litígios que tenham por objecto a impugnação de actos de natureza administrativa relativos ao inquérito e à instrução criminais e aos exercício da acção penal;
·           Alíneas b) e c) do n.º 3 – fiscalização dos actos materialmente administrativos praticados pelo Presidente do STJ, pelo Conselho Superior da Magistratura e respectivo Presidente;
·           Alínea d) do n.º 3 – exclui a apreciação de litígios emergentes daqueles contratos individuais de trabalho que integram um regime especial de emprego público;
·           Alínea m) do n.º 1 – restringe a possibilidade de haver a atribuição a outras jurisdições de questões de contencioso eleitoral relativo a órgãos de pessoas colectivas de direito público, subtracção operada pela Constituição. 

3.1.4 – Dúvidas que subsistem na nova legislação:
O desaparecimento da exclusão do julgamento de questões de direito privado, ainda que qualquer uma das partes fosse de direito público, não significa, necessariamente, que a jurisdição administrativa passe a incluir todas as questões de direito privado relacionadas com a actividade administrativa.
Poder-se-á, talvez, daí retirar que hoje em dia o ETAF admite a possibilidade de atribuição pontual aos tribunais administrativos de questões de direito privado.
Também deixaram de estar excluídos os litígios referentes ao domínio público e à sua delimitação com outros domínios. Esta exclusão, ao implicar a aplicação da cláusula geral, vai trazer para os tribunais administrativos a competência de conhecer da impugnação dos actos de qualificação dominial (actos administrativos), bem como as acções relativas a questões de delimitação (questões de direito administrativo).
A nova legislação terá pretendido confirmar a subtracção aos tribunais administrativos do julgamento das contra-ordenações e dos litígios relativos à indemnização por expropriação e requisição por utilidade pública, atribuídas pelo Código das Expropriações aos tribunais judiciais.
A sua manutenção justifica-se por razões de praticabilidade, devido ao escasso número e da implantação geográfica dos tribunais administrativos que levaria a elevados custos de deslocação para os particulares. Já as contra-ordenações também são da competência especializada dos tribunais judiciais.
Contudo, a jurisdição competente para conhecer os litígios referentes à reversão e adjudicação de bens expropriados passa a ser da jurisdição administrativa.

3.2 – Outros desvios legais:
Leis que atribuem expressamente competência para o julgamento de questões de direito administrativo a tribunais não administrativos:
·         Tribunal Constitucional:
·           Julgar questões relativas à disciplina dos seus juízes;
·           Declarar perda de mandato de membros do executivo municipal e destituição de titulares administrativos de cargos políticos com fundamento na infracção das normas relativas a incompatibilidades ou impedimentos.
·         Outros tribunais:
·           Impugnação de actos de recrutamento de juízes do Tribunal de Contas, que deve ser interposto para o Plenário daquele Tribunal.
·         Tribunais judiciais:
·           Contra-ordenações ou indemnizações por expropriação:
·           Medidas especiais de policia que têm de ser judicialmente validadas;
·           Impugnação de órgãos competentes da segurança social de concessão, recusa, retirada ou declaração de caducidade do apoio judicial;
·           Impugnação de todas as decisões administrativas relativas a direito de propriedade industrial;
·           Impugnação de decisões de entidades reguladoras. 

3.3 – Relação intra-jurisdicional entre tribunais administrativos e fiscais:
Existe uma relativa unidade de jurisdição administrativa e fiscais, contudo estas são distinguíveis.
O critério orgânico, associado ao critério material, exclui as questões administrativas que caibam aos tribunais tributários, isto é, que digam respeito a relações jurídicas fiscais (nestas se incluem: os recursos contras esses actos administrativos e a impugnação de nomas administrativas tributárias – arts. 26.º, 38.º e 49.º ETAF)
A lei comete para os tribunais tributários a competência para a execução de actos administrativos que determinem o pagamento de uma quantia certa. Trata-se de um desvio interno às regras de competência, os tribunais administrativos são competentes quando implique o pagamento de prestações pecuniárias.

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