quinta-feira, 21 de abril de 2011

O mito do recurso hierárquico necessário – Parte II – Sob duas perspectivas diferentes


A favor do recurso hierárquico necessário nos casos em que uma lei o determine expressa ou inequivocamente

A impugnação jurisdicional de actos administrativos pode estar dependente da observância do ónus da prévia utilização, pelo impugnante, de vias de impugnação administrativa, como a reclamação, o recurso hierárquico ou o recurso tutelar (art. 158.º e ss. CPA).
O CPTA não exige, em termos gerais, que os actos administrativos tenham sido objecto de prévia impugnação administrativa para que possam ser objecto de impugnação contenciosa. A regra decorrente dos arts. 51.º e 59.º, n.ºs 4 e 5, CPTA é a de que a prévia utilização de vias de impugnação administrativa não é necessária para aceder à via contenciosa. Ou seja, não é necessário, para haver interesse processual no recurso à impugnação perante os tribunais administrativos, que o autor demonstre ter tentado, sem sucesso, obter a remoção do acto que considera ilegal pela via extrajudicial.
O CPTA não tem o alcance de afastar as múltiplas determinações legais avulsas que instituem impugnações administrativas necessárias. Na ausência de determinação legal expressa em sentido contrário, deve entender-se que os actos administrativos com eficácia externa são imediatamente impugnáveis perante os tribunais administrativos, sem necessidade da prévia utilização de qualquer via de impugnação administrativa. As decisões administrativas continuam a estar sujeitas a impugnação administrativa necessária apenas nos casos em que isso esteja expressamente previsto na lei, em virtude de opção expressa e justificada do legislador[1].
Subjacente a esta posição está a rejeição do argumento da inconstitucionalidade da imposição de impugnações administrativas, que na doutrina tem sido deduzido da circunstância de, na revisão de 1989, ter sido eliminada do art. 268.º, n.º 3, CRP (versão à data) a referência que dele inicialmente constava à definitividade dos actos administrativos susceptíveis de impugnação contenciosa. Rejeição fundada no argumento de que não cabe à Constituição estabelecer os pressupostos de que possa depender a impugnação dos actos administrativos, de modo a afirmar-se que eles só são legítimos se forem objecto de expressa previsão constitucional. A questão já será distinta se o legislador ordinário impuser requisitos excessivos e desproporcionados, que impliquem uma restrição ao direito fundamental de acesso à justiça administrativa[2].
Deve, assim, entender-se que, quando esteja previsto em legislação avulsa que a prévia utilização de uma impugnação administrativa é necessária para se poder intentar uma acção jurisdicional, aquela impugnação tem de ser utilizada dentro do prazo para o efeito estabelecido, sob pena de preclusão do acesso aos tribunais. Trata-se de um requisito adicional ou de um pressuposto processual atípico.


A favor da inconstitucionalidade de qualquer exigência legal de recurso hierárquico necessário

Há que retirar todas as consequências do direito fundamental de acesso à justiça administrativa tal como previsto no art. 268.º, n.º 4, CRP, nomeadamente a de que tal feriu de inconstitucionalidade as disposições legais que impõem o recurso hierárquico necessário[3].
Mesmo antes da reforma, o requisito do recurso hierárquico necessário era inconstitucional, pois violava[4]:
-       O princípio da plenitude da tutela dos direitos dos particulares (art. 268.º, n.º 4, CRP), já que a exigência do recurso hierárquico necessário configura uma negação do direito fundamental ao recurso contencioso,
-       O princípio da separação entre a Administração e a Justiça (arts. 114.º, 205.º e ss., 266.º e ss. CRP), com a preclusão do direito de acesso à justiça administrativa em face da não dedução de recurso hierárquico prévio,
-       O princípio da desconcentração administrativa (art. 267.º, n.º 2, CRP), ao impedir a imediata recorribilidade dos actos lesivos,
-       O princípio da efectividade da tutela (art. 268.º, n.º 4, CRP), pois a preclusão da impugnabilidade do acto administrativo, caso o particular não tenha interposto o recurso hierárquico previamente, reduz o prazo de impugnação administrativa. Tal consubstancia uma restrição desproporcionada do direito fundamental de acesso à justiça administrativa.
O legislador, com a reforma, parece ter vindo, claramente, terminar a necessidade de recurso hierárquico necessário como requisito de acesso à justiça administrativa[5]. De facto, o CPTA afasta definitivamente a necessidade de recurso hierárquico, como pressuposto de impugnação contenciosa de actos administrativos.
Fá-lo ao prescrever a impugnabilidade dos actos administrativos com eficácia externa, nomeadamente de todo e qualquer acto administrativo susceptível de lesar direitos ou interesses legalmente protegidos dos particulares (art. 51.º, n.º 1, CPTA). Não havendo referências no CPTA à necessidade de prévia interposição de recurso hierárquico para o uso de meios contenciosos, tal deve valer também para qualquer lei avulsa que consagre a necessidade de recurso hierárquico.
Tal afastamento decorre, também, do facto de que a utilização de meios de impugnação administrativa suspende o prazo de impugnação contenciosa do acto administrativo (art. 59.º, n.º 4, CPTA). Deste modo, o particular pode optar previamente pela via administrativa, sem perder a oportunidade de recorrer contenciosamente depois da decisão do seu pedido de reapreciação do acto administrativo. O recurso hierárquico e as outras garantias administrativas deixam de ser necessários, tornando-se úteis[6].
A desnecessidade do recurso hierárquico advém, ainda, da regra prevista no art. 59.º, n.º 5, CPTA, segundo a qual a suspensão do prazo de impugnação contenciosa não impede o particular de intentar uma acção de impugnação contenciosa do acto na pendência da impugnação administrativa. As garantias administrativas passaram, assim, a ser facultativas[7].
Portanto, conclui-se que o CPTA consagrou o afastamento do pressuposto processual do recurso hierárquico necessário e de outras garantias administrativas susceptíveis de serem consideradas necessárias. Estabeleceu-se, desse modo, um regime jurídico que permite o imediato acesso à via contenciosa.
Quanto às disposições avulsas que prevêem a obrigatoriedade de recurso hierárquico prévio à impugnação contenciosa, a melhor solução, de iure condendo, para compatibilizar o regime jurídico em causa seria a da revogação expressa das disposições que o prescrevem e a da generalização da atribuição de feito suspensivo a todas as garantias administrativas. Tal solução permitiria compatibilizar os interesses do particular, da Administração e do bom funcionamento do sistema de justiça  administrativa.
De iure condito, há que entender que caducam todas as normas que disponham a necessidade de recurso hierárquico ou outro meio gracioso. As garantias administrativas devem ser consideradas facultativas e com efeito dos prazos de impugnação contenciosa, de modo a não privarem o particular de recorrer imediatamente ou simultaneamente à via contenciosa.


[1] Cfr., neste sentido, Mário Aroso de Almeida, Manual de Processo Administrativo, Coimbra, 2010, pp. 302 a 308, e Vieira de Andrade, A Justiça Administrativa (Lições), 11.ª edição, Coimbra, 2011, pp. 221 a 222.
[2] Cfr. Acórdão n.º 499/96 do Tribunal Constitucional (disponível, na íntegra, no post  anterior), com anotação concordante de Viera de Andrade, “Em Defesa do Recurso Hierárquico Necessário – Acórdão n.º 499/96, do Tribunal Constitucional”,  in Cadernos de Justiça Administrativa, n.º 0, Braga, 1996, pp. 13 e ss. Leia-se a fundamentação do Acórdão indicado, na qual são referidos os argumentos invocados pelos autores que entendem que não terá sido suprimida a exigência de que o recurso contencioso seja precedido de recurso hierárquico necessário, tendo em vista a formação de um acto administrativo verticalmente definitivo, e os argumentos mencionados pelos autores que sustentam que terá sido inconstitucionalizada qualquer exigência de recurso hierárquico necessário, concluindo que cabe sempre recurso contencioso de acto administrativo com eficácia externa.
[3] Cfr. Vasco Pereira da Silva, Em Busca do Acto Administrativo Perdido, Coimbra, 1996, pp. 660 e ss.
[4] Argumentos deduzidos por Vasco Pereira da Silva em, por exemplo, O Contencioso Administrativo no Divã da Psicanálise, 2.ª edição, Coimbra, 2009, pp. 348 e 349.
[5] Cfr. Paulo Otero, “Impugnações Administrativas”, in Cadernos de Justiça Administrativa, n.º 28, Braga, 2001, pp. 50 a 54.
[6] Cfr. Paulo Otero, “Impugnações..., cit., p. 52, e Vasco Pereira da Silva, “De Necessário a Útil: a Metamorfose do Recurso Hierárquico no Novo Contencioso Administrativo”, in Cadernos de Justiça Administrativa, n.º 47, Braga, 2004, pp. 21 e ss.
[7] Cfr. Vasco Pereira da Silva, O Contencioso..., cit., p. 353.

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