domingo, 17 de abril de 2011

Contencioso de impugnação de normas: a decisão com força obrigatória geral como limite insuperável à liberdade de conformação da Administração?

O CPTA institui, no domínio da impugnação de normas[1], dois esquemas distintos de impugnação, a título principal: (i) o pedido de declaração de ilegalidade pode ser formulado pelo lesado com efeitos circunscritos ao caso concreto, correspondendo o juízo de ilegalidade a uma desaplicação da norma na situação sub judice, ou (ii) destinar-se a obter o reconhecimento judicial da ilegalidade com força obrigatória geral (arts. 72.º e 73.º CPTA).

A questão que pretendo levantar é a de saber se poderá a Administração reeditar a norma declarada ilegal com força obrigatória geral e, em caso afirmativo, se pode fazê-lo com efeitos retroactivos, desde que respeitados os princípios constitucionais da segurança e da certeza jurídicas, nos termos gerais. Trata-se, no fundo, de estabelecer o ponto de equilíbrio entre a posição do tribunal e das autoridades públicas ou particulares que com elas colaborem, no exercício da função administrativa e de aferir os limites da liberdade conformadora destes últimos.

Sem prejuízo de diferente visão, parece-me que é de admitir a possibilidade de reprodução da norma e de fixação do respectivo âmbito de eficácia. Há, com efeito, argumentos importantes nesse sentido:

1.º)          Uma proibição absoluta de reprodução da norma declarada ilegal não é admissível:
(i)                 Tal proibição traduzir-se-ia na atribuição ao tribunal um poder absoluto, assumindo a sua declaração carácter incontestável.
(ii)               Estaríamos assim, talvez, a aproximar-nos da ideia de Benjamin Constant de um poder moderador acima de todos os poderes. Ora, semelhante poder, a existir, seria atribuído a um órgão como o Tribunal Constitucional, e não a um tribunal administrativo.
(iii)             A existência de uma supremacia absoluta da decisão é claramente afastada pela possibilidade de recurso per saltum ou de recurso excepcional de revista para o STA (arts. 34.º, 150.º e 151.º CPTA)[2].
(iv)             Até quando se trata de declaração de inconstitucionalidade, desvalor, à partida, mais gravoso do que a ilegalidade, se admite possibilidade de se ultrapassar o juízo de inconstitucionalidade formulado pelo Tribunal Constitucional em sede de fiscalização preventiva, mediante confirmação (art. 279.º, n.º 2, CRP).
(v)               Aliás, o tribunal pode fazer um juízo errado sobre a legalidade, declarando ilegal uma norma que na realidade não o era. Pelo menos neste caso ter-se-ia que admitir uma possibilidade de reprodução da norma[3].
(vi)             Assim, caso não fosse possível editar norma de conteúdo idêntico àquela que foi declarada ilegal, quando é certo que essa declaração pode até estar errada, estaríamos a negar, a nosso ver, a ideia de democracia crítica (Zagrebelsy): trata-se da ideia de uma democracia que admite que pode agir melhor, que reconhece os seus erros e volta a discutir os problemas; não é mais do que reconhecer que não há decisões irreversíveis porque a infalibilidade é uma noção que não existe, o que significa que pode sempre mudar-se para melhor. É um regime inquieto sempre disposto a corrigir-se. 

2.º)          Também não nos parece justificada a limitação da possibilidade de reprodução aos casos de ilegalidade da sentença do tribunal.

Limitar a susceptibilidade de reprodução da norma aos casos de ilegalidade da declaração do tribunal administrativo de círculo (ou do TCA ou STA, em caso de recurso) da declaração implicaria a prévia determinação da existência dessa ilegalidade. A quem competiria, então, tal juízo? Teria de ser a própria Administração a formular esse juízo, que é o pressuposto da sua intervenção normativa. Será que se deve admitir que a Administração fiscalize as decisões do órgão de fiscalização da legalidade? Parece-nos que não. Assim sendo, não pode a reprodução da norma ficar dependente de um juízo da Administração incidente sobre a decisão judicial. Tendo em conta o princípio da separação de poderes, julgamos que, das duas uma: (i) ou excluímos, em todas as situações, a liberdade conformadora da Administração, o que já vimos que não é admissível; ou (ii) admitimos a liberdade de reprodução, não condicionada à existência de ilegalidade. 

3.º)          Parece-nos melhor a última posição enunciada: a Administração pode reproduzir a norma, sem prejuízo de uma eventual nova fiscalização da sua legalidade. Pergunta-se, todavia, se esta posição não conduz à destruição do papel dos tribunais e das suas decisões. Como compatibilizá-la com a força obrigatória geral que é atribuída a esta decisão? 

Quanto à primeira questão, cabe notar que não se destrói o papel dos tribunais, porque, na verdade, estes nunca tiveram o papel de órgãos supraconstitucionais, aptos a produzir decisões capazes de prevalecer sempre sobre as decisões de qualquer outro órgão, além de que é sempre possível um novo juízo sobre a norma reeditada. 

Quanto ao segundo argumento, ele mais não faz, em rigor, do que reproduzir, sob outra formulação, a questão de base de que tratamos, já que, caso não houvesse força obrigatória geral, o problema da susceptibilidade de reprodução da norma nem chegaria a colocar-se. O que sucede é que a força obrigatória geral da declaração não equivale à sua necessária correcção ou legalidade. Se assim é, dentro da lógica de aperfeiçoamento do sistema, não se pode bloquear essa evolução, o que implica reconhecer a liberdade de produção da norma.

4.º)          Será que, apesar de poder repetir a norma, a Administração vê limitada a sua liberdade de fixação do respectivo âmbito temporal de aplicação? I.e., será que fica excluída a possibilidade de atribuir eficácia retroactiva à nova norma?
Uma vez apurado que a função administrativa não vê a sua liberdade conformadora diminuída, não vemos por que restringir essa liberdade quando se trata não já da definição do conteúdo da norma mas sim do seu âmbito de aplicação temporal.

Poderia pensar-se que esta hipótese quebra em medida mais alargada do que a repetição com efeitos ex nunc o equilíbrio entre o poder administrativo e o poder fiscalizador dos tribunais.

Não é assim, todavia. Não há diferenças essenciais que justifiquem a diferença de tratamento das situações: se a decisão do tribunal declara a inconstitucionalidade da norma para o presente e para o passado, porquê, então, fazer a distinção? Importante sim é, nos termos gerais, fazer um rigoroso escrutínio da compatibilidade da eficácia retroactiva com os princípios constitucionais, p.ex., segurança e confiança.

5.º)     Mas será que esta norma com eficácia retroactiva sana os efeitos já produzidos pela norma declarada ilegal com força obrigatória geral?

           A resposta deve ser negativa, por dois motivos:

(i)        Ou a norma declarada ilegal era, na realidade, legal e aí nunca deixou de o ser, uma vez que o tribunal não tem o poder de criar um vício na norma. O tribunal apenas declara, nunca constitui, a ilegalidade. Neste caso, não poderíamos falar de um fenómeno de sanação, pois a norma nunca chegou a ser ilegal.
(ii)      Ou a norma era, de facto, ilegal e, nessa hipótese, há que distinguir:
a)             No caso de ilegalidade material, a nova norma também será ilegal, o que significa que não tem poder para sanar a anterior ilegalidade. É certo que a nova norma pode não ser – ou não ser logo – declarada ilegal. Nesta situação, apesar de aparentemente ocorrer a produção de efeitos, o que temos, afinal, é uma “ilusão de óptica jurídica”[4], de maneira nenhuma se podendo aqui falar de uma convalidação. A validade não se afere, naturalmente, pela aparência de vigência da norma, ou pela aparência da produção de efeitos. Tudo está em saber, sim, se a norma está ou não inquinada por algum vício, porque, se estiver, vai ser afectada retroactivamente.
b)            No caso de ilegalidade que resultasse de vícios formais, a nova norma em princípio é válida, pelo que se coloca o problema de saber se fica sanada a invalidade da anterior norma declarada ilegal, particularmente no caso de ser atribuída eficácia retroactiva. Na sanação, é o mesmo acto que é tornado válido e eficaz. Não se trata de um novo acto vir ocupar o seu lugar, mesmo que com efeitos retroactivos. Em suma, também aqui não nos deparamos com um caso de sanação e, muito menos, de retroactividade saneadora. Renovação[5] do acto e sanação não podem ser identificadas.



[1] Norma impugnável deve ser entendida num sentido amplo, incluindo todas as disposições de direito administrativo com carácter geral e abstracto, que visem a produção de efeitos permanentes numa relação intersubjectiva. O pedido de declaração com força obrigatória geral nunca pode fundamentar-se numa inconstitucionalidade directa, que está subtraída à jurisdição administrativa (art. 72.º, n.º 2, CPTA). Cf. Vieira de Andrade, A Justiça Administrativa, 11.ª ed., Coimbra, 2011, pp. 211 ss.
[2] Cf. Vieira de Andrade, A Justiça…, cit., p. 215.
[3] Cf. Paulo Otero, Ensaio sobre o caso julgado inconstitucional, Lisboa, 1993, pp. 140 e ss, mas a propósito da reprodução de norma declarada inconstitucional com força obrigatória geral.
[4] Cf. Paulo Otero, Legalidade e Administração Pública, Coimbra, 2007 (reimpr. da edição de 2003), p. 1018.
[5] Sobre a renovação, cf. Menezes Cordeiro, Da Confirmação no Direito Civil, Coimbra, 2008, pp. 130 e 131.

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