domingo, 17 de abril de 2011

Acção de condenação à prática de acto devido nos casos de deferimento tácito



Na sequência da introdução deste problema nas aulas práticas e do seu breve tratamento nas aulas teóricas, decidi aprofundar o meu conhecimento sobre o mesmo e verificar a bondade da minha primeira intuição. Agradeço críticas e sugestões.
Ana Júlia Maurício, aluna n.º 16468

1. Colocação do problema
            Um dos requisitos para que seja admissível o pedido de condenação à prática do acto administrativo devido é o silêncio ou decisão negativa perante o requerimento apresentado previamente pelo interessado. Este pressuposto engloba várias situações, nomeadamente a hipótese de silêncio perante o requerimento apresentado (art. 67.º, n.º 1, a), CPTA), o caso de indeferimento expresso do requerimento (art. 67.º, n.º 1, b), CPTA) e a hipótese de recusa de apreciação do requerimento (art. 67.º, n.º 1, c), CPTA). Indagaremos, neste post, da possibilidade de incluir os casos de deferimento tácito no âmbito do conceito de silêncio perante o requerimento apresentado, nos termos da al. a) do n.º 1 do art. 67.º do CPTA.
            Em regra, o incumprimento pela Administração, no prazo legal, do dever de decidir dos requerimentos que lhe tenham sido apresentados consubstancia uma omissão que confere interesse em agir ao interessado no âmbito de uma acção de condenação para a prática do acto ilegalmente omitido. Porém, casos há em que a lei, excepcionalmente, associa ao decurso do prazo legal de decisão dos requerimentos dirigidos à Administração a produção de efeitos jurídicos, resultantes do silêncio, de conteúdo favorável à pretensão do requerente[1]. São os casos de deferimento tácito[2].
            Havendo lugar a deferimento tácito, fará sentido admitir-se uma acção de condenação à prática do acto devido? Terá o particular interesse em agir? Retirará algum efeito útil da decisão de condenação à prática do acto que foi tacitamente deferido?

2. Contra a inclusão do deferimento tácito no conceito de omissão preconizado pelo legislador
            Há quem afirme[3] que se deve entender que os casos em que a lei associa à ausência de decisão sobre o requerimento, dentro do prazo legalmente estabelecido, a formação de um deferimento tácito estão excepcionados da previsão do art. 67.º, n.º 1, a), CPTA. Em situações de deferimento tácito não haveria lugar à propositura de uma acção de condenação à prática do acto omitido, pois a produção desse acto já havia resultado da lei[4] e a eventual emissão de um novo acto administrativo com o mesmo conteúdo conduziria a uma desnecessária duplicação de efeitos jurídicos.
            Estes autores[5] defendem, antes, a possibilidade de haver lugar a outras acções. A uma acção comum de reconhecimento, caso o interessado pretenda tornar certo o deferimento ou os seus termos. A uma acção comum de condenação em comportamento, se tiver de haver lugar a uma execução administrativa. A uma acção de impugnação, caso um terceiro ou o Ministério Público pretendam pôr em causa a validade do acto.
            Portanto, em virtude de a esfera jurídica do particular já estar regulada e protegida, visto a lei criar o acto administrativo devido, não necessitaria o particular de mais protecção jurídica do que a que já detém. Será realmente assim?

3. Críticas à posição exposta supra e posição defendida
            Em primeiro lugar, há que questionar a concepção do deferimento tácito[6] como acto administrativo resultante de presunção legal. O facto de a lei retirar efeitos jurídicos da omissão de decisão pela Administração, dentro do prazo legal, não implica que haja um verdadeiro acto administrativo. Julgamos tratar-se, antes, de uma ficção legal[7] que permite a produção de efeitos jurídicos nesses casos. Porém, tal não deve ser confundido ou equiparado sem mais a uma actuação intencional da Administração.
            Em segundo lugar, mesmo admitindo que da omissão da Administração conducente ao deferimento tácito resulta um acto administrativo, tal não é suficiente para afastar a possibilidade do interessado intentar uma acção de condenação à prática do acto legalmente devido. É verdade que, produzindo o deferimento tácito efeitos positivos, estará, em princípio, em causa uma ficção legal favorável ao particular. Mas nem sempre é assim.
            Sendo o deferimento tácito uma ficção legal de efeitos positivos, o pedido de condenação à prática do acto devido deve ser admissível em duas situações:
-       No caso do deferimento tácito não corresponder integralmente às pretensões do particular, sendo que, nessa medida, pode ser considerado como parcialmente desfavorável, o que permite a admissibilidade de acção de condenação à prática do acto.
-       Na hipótese do deferimento tácito, numa relação jurídica multilateral, ser favorável em relação a algum ou alguns dos seus sujeitos, mas não face aos demais, os quais se vêm confrontados com uma omissão administrativa que gera efeitos desfavoráveis, que lhes deve permitir aceder à acção de condenação[8].
    Em ambas as situações estaria em causa uma omissão de acto administrativo devido, da qual podem, de facto, resultar efeitos desfavoráveis, quer em face do requerente, quer em face de outro sujeito da relação jurídica multilateral. Em tais situações em que, apesar de não existir um acto da Administração, são produzidos efeitos jurídicos positivos ficcionados pela lei e, também, efeitos desfavoráveis, a solução adequada parece ser admitir o pedido de condenação das partes que alegam resultar efeitos lesivos da preterição da decisão devida.
  A posição de ficcionar que o deferimento tácito consubstancia um acto administrativo que pode ser alvo de acção de impugnação deixou de fazer sentido depois da consagração da acção especial de condenação à prática do acto legalmente devido.
  Concluindo, o silêncio da Administração perante o requerimento apresentado, que constitui um pressuposto de admissibilidade do pedido de condenação à prática de acto administrativo devido, tanto pode verificar-se em caso de indeferimento como de deferimento tácitos[9].



[1] Alguns dos casos de deferimento tácito estão previstos no art. 108.º, n.º 3, CPA: licenciamento de obras particulares, alvarás de loteamento, autorizações de trabalho concedidas a estrangeiros, autorizações de investimento estrangeiro, autorização para laboração contínua, autorização de trabalho por turnos, acumulação de funções públicas e privados.
[2] Cfr. João Tiago Silveira, O Deferimento Tácito – Esboço do Regime Jurídico do Acto Tácito Positivo na Sequência de Pedido do Particular, Coimbra, 2004, passim.
[3] Contra a possibilidade de incluir os casos de deferimento tácito no conceito de silêncio relevante para efeitos de admissibilidade de acção de condenação à prática de acto devido estão Mário Aroso de Almeida (O Novo Regime do Processo nos Tribunais Administrativos, 4.ª edição, Coimbra, 2005, pp. 199 e ss., e Manual de Processo Administrativo, Coimbra, 2010, pp. 324 e 325) e Vieira de Andrade (A Justiça Administrativa (Lições), 11.ª edição, Coimbra, 2011, nota de rodapé n.º 486, pp. 226 e 227).
[4] O deferimento tácito é entendido como um acto administrativo que resulta de uma presunção legal. Ou seja, está-se perante uma presunção legal através da qual a lei extrai da conduta de inércia da Administração o efeito jurídico de um deferimento que substitui, para todos os efeitos, o acto administrativo de sentido positivo que foi omitido. Este é o entendimento propugnado por Mário Aroso de Almeida, Manual..., cit., p. 324.
[5] Cfr. Mário Aroso de Almeida, Manual..., cit., p. 325, e Vieira de Andrade, A Justiça..., cit., p. 226.
[6] Vasco Pereira da Silva (O Contencioso Administrativo no Divã da Psicanálise, 2.ª edição, Coimbra, 2009, pp. 397 a 402) defende que o deferimento tácito, tal como o indeferimento tácito, é uma ficção legal. Afirma, aliás, que, se a figura do deferimento tácito fazia sentido como meio destinado a facilitar actuações burocráticas, no caso de relações inter-orgânicas ou como forma de proteção de direitos dos particulares contra a inércia da Administração, no domínio das permissões legais perdeu “grande parte da sua razão de ser”. Aliás, do ponto de vista do interesse público e de acordo com os princípios da eficiência e desburocratização, é até desaconselhável a existência de aprovações burocráticas, já que muitas vezes estão em causa decisões no âmbito de relações multilaterais que obrigam à ponderação de múltiplos interesses.
[7] Acompanhamos, neste sentido, Vasco Pereira da Silva, O Contencioso..., cit., p. 398.
[8] Um exemplo é o caso do deferimento tácito de avaliação de impacto ambiental, previsto no art. 19.º do Decreto-Lei n.º 69/200, de 3 de Maio (“considera-se que a decisão de impacto ambiental é favorável se nada for comunicado à entidade licenciadora ou competente para a autorização no prazo de 140 dias, no caso de projectos constantes do anexo I, ou de 120 dias, no caso de outros projectos”). Se o deferimento tácito corresponde à satisfação da pretensão do requerente, ele constitui um acto desfavorável face a outros sujeitos da relação jurídica multilateral, que alegam que a decisão devida, no caso concreto, teria sido antes a do indeferimento ou a do deferimento condicional, de modo a evitar ou minimizar os efeitos ambientais negativos (art. 17.º da Lei de Avaliação de Impacto Ambiental).
[9] Cfr., neste sentido, Rita Calçada Pires, O Pedido de Condenação à Prática de Acto Administrativo Legalmente Devido – Desafiar a modernização administrativa?, Coimbra, 2004, pp. 72 a 78. Afirma, mesmo, que ao acto tácito de deferimento deveria atribuir-se efeitos apenas no âmbito procedimental e sem interferência no funcionamento dos meios jurisdicionais de que o particular dispõe para reagir contra a ausência de uma decisão final. Desse modo, a acção para a determinação para a prática de acto devido seria o único e eficaz meio processual de tutela jurisdicional das omissões da Administração.

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