domingo, 17 de abril de 2011

Conflitos de princípios na repartição da competência dos tribunais: o caso do contrato individual de trabalho na Administração Pública

§ 1.º Apresentação do problema: a “antinomia legislativa” em matéria de contrato individual de trabalho
A reforma do contencioso administrativo português veio estabelecer os fundamentos de uma nova unidade jurisdicional, ultrapassando-se a “dualidade esquizofrénica” que caracterizava a contratação administrativa[1]. A adopção do critério da relação jurídica pelo art. 4.º do ETAF permitiu abrir o contencioso a novas realidades jurídicas, que resultam da actuação de uma Administração Prestadora.
Porém, parece persistir uma “antinomia legislativa”[2] entre a norma que exclui o contencioso do contrato individual de trabalho do âmbito da justiça administrativa (art. 4.º, n.º 3, al. d), ETAF) e a norma que integra nesta jurisdição o contencioso de qualquer contrato que seja antecedido de procedimento administrativo (art. 4.º, n.º 1, al. e)). Para Vasco Pereira da Silva[3], o art. 4.º do ETAF procede, simultaneamente, para efeitos contenciosos, a uma qualificação e a uma desqualificação como administrativo do contrato individual de trabalho. Assim, o Autor considera mais adequado que se tivesse transferido todo o “direito laboral administrativo” para a jurisdição administrativa e fiscal, dando prevalência ao critério da função administrativa sobre o do regime jurídico. Em alternativa, poder-se-ia, também, transferir estas questões para os tribunais judiciais, dando prevalência ao critério da similitude material das situações contratuais (relações de natureza laboral) sobre o da natureza (pública ou privada) das regras jurídicas[4].
Assim, impõe-se questionar em que moldes se deve determinar a jurisdição competente. Sabemos já que existe uma repercussão directa do procedimento administrativo nos contratos posteriormente celebrados, ou seja, que a sujeição a normas procedimentais jurídico-públicas “contagia” todo o regime jurídico aplicável ao contrato[5], porém, outros problemas permanecem em aberto. Imaginemos que o autor propõe, num tribunal da jurisdição comum, acção de anulação de um contrato individual de trabalho, com fundamento em invalidades materiais. Os tribunais judiciais serão competentes, em resultado da exclusão expressa desta matéria da jurisdição administrativa que é operada pelo ETAF, no art. 4.º, n.º 3, al. d).
            Os factos invocados pelo autor concedem plena competência aos tribunais comuns. Porém, se durante o processo o juiz chegar à conclusão que existem vícios no procedimento contratual que levou àquela contratação – matéria para a qual não é competente, nos termos do art. 4.º, n.º 1, al. e), ETAF – que decisão deverá tomar?
§ 2.º Ponto de partida: os princípios subjacentes à repartição de competências na ordem jurídica portuguesa
Ponto de partida da nossa análise deve ser a compreensão dos objectivos do sistema português de repartição de competências entre os tribunais. São eles, por um lado, assegurar que a decisão é tomada pelo juiz mais bem colocado para decidir do mérito da causa e, por outro, efectivar a máxima racionalização dos recursos afectos à realização da justiça, com a finalidade última de “tornar breve e útil a instrução e discussão e justa a decisão” [6].  
O problema da competência tem, na realidade, uma incidência material efectiva, ligando-se, aliás, ao problema metodológico da decisão justa, numa vertente institucional: está em causa saber quais as condições que o ordenamento jurídico deve criar para a realização da justiça pelos tribunais[7].  

Porém, há determinados casos em que estes princípios podem ser postos em causa e em que outros princípios, de sentido oposto, podem reclamar aplicação, determinando, directa ou indirectamente, a alteração das regras de competência positivamente fixadas pelo legislador.
É possível identificar, no próprio Direito positivo, algumas situações que demonstram que os princípios atrás fixados devem, por vezes, ceder:
(i)                 No caso da competência territorial, se o tribunal onde for proposta a acção se considerar territorialmente incompetente, remete o processo para o tribunal competente, sendo a remessa vinculativa para este (art. 111.º, n.os 2 e 3 CPC). Excepciona-se, assim, o princípio Kompetenz-Kompetenz[8], uma vez que o segundo tribunal não é livre de apreciar a sua própria competência. Ainda que a decisão do primeiro tribunal não seja a correcta, constitui caso julgado formal, por se tratar de decisão sobre a relação jurídica processual (art. 672.º CPC). Impede-se a reapreciação da competência relativa do tribunal, ainda que com base em diferente fundamento, bem como que o tribunal remetido se declare relativamente incompetente[9]. O objectivo é evitar um real conflito negativo de competência em razão do território, pelo que o legislador adopta uma solução preventiva de tal conflito. Se a questão da competência territorial voltar a ser, indevidamente, apreciada pelo segundo tribunal, havendo, então, duas decisões contraditórias, ter-se-á que cumprir a que passou em julgado em primeiro lugar (art. 675.º CPC).
(ii)               No caso da competência material, a especialização dos tribunais cede muitas vezes perante considerações de economia de meios ou de economia processual: há comarcas onde não se justifica a existência de tribunais de competência especializada[10], além de que a repartição de competências pode deixar de valer, por exemplo, quando surjam questões incidentais (art. 96.º, n.º 1, CPC) ou prejudiciais (art. 97.º, n.º 1, CPC). Na verdade, a competência que a lei reconhece ao tribunal da causa estende-se aos incidentes e à matéria da defesa suscitada pelo réu. Mais: verificada uma questão prejudicial, o juiz, ao invés de suspender a instância, pode prosseguir na apreciação e no julgamento da acção, decidindo ele próprio a questão prejudicial, que poderá ser da competência de um tribunal criminal ou administrativo. Embora em qualquer dos casos a decisão transitada apenas forme caso julgado formal, não deixa de ser manifesto o confronto entre o princípio da celeridade processual – que aconselha que as questões incidentais ou prejudiciais sejam desde logo decididas pelo juiz da causa – e os princípios da justiça e acerto da decisão – que recomendam o seu exaustivo conhecimento em acção própria, com o inconveniente do protelamento da acção onde a questão é incidental ou prejudicialmente suscitada[11].

Com este ponto de partida, o problema que se coloca é o de saber se não haverá outros casos em que a repartição de competências deve ser modificada, apesar de a lei não o determinar expressamente.

§ 3.º Extensão de competência do tribunal judicial?
No exemplo referido de início, era proposta uma acção num tribunal judicial, com fundamento em invalidades materiais de um contrato individual de trabalho. No decurso do processo, o juiz chega à conclusão que não existem invalidades materiais, mas que o contrato poderia ser anulado com fundamento em invalidades do procedimento pré-contratual. O tribunal judicial é plenamente competente para conhecer a questão, mas não à luz de todos os fundamentos possíveis. Ou seja, o tribunal pode anular o contrato com fundamento em invalidades materiais, mas, à partida, já não o poderá fazer se estiver em causa o procedimento concursal, questão que será da competência dos tribunais administrativos e fiscais (art. 4.º, n.º 1, al. e), ETAF).
A pergunta que se faz é se o tribunal poderá apreciar a causa sob todos os pontos de vista, incluindo aquele para o qual não seria prima facie competente.
Se não admitíssemos esta hipótese, a decisão a proferir pelo juiz da causa seria necessariamente uma decisão de mérito. Não poderia haver lugar à absolvição da instância porque, como se disse, o tribunal é plenamente competente para conhecer a causa. Assim, o juiz teria de decidir pela absolvição do réu do pedido, obrigando o Autor, caso queira ver anulado aquele contrato, a propor nova acção, agora na jurisdição administrativa, para ser conhecida a invalidade do procedimento pré-contratual. Note-se que não haverá caso julgado porque este só abrange a identidade da causa de pedir (i.e., dos factos com relevância jurídica) e não o pedido em si.
Porém, esta solução será contrária à garantia de acesso ao Direito e aos tribunais, que inclui o direito à decisão num prazo razoável, bem como um imperativo de não agravamento injustificado dos custos processuais. Os arts. 20.º da CRP e 6.º, n.º 1, da Convenção Europeia de Direitos do Homem determinam, como é sabido, que se eliminem os obstáculos que impedem ou dificultam o acesso à justiça, estabelecendo que o objectivo do processo deverá ser sempre o de eliminar obstáculos que vedem ou, no mínimo, tornem mais difícil o acesso à justiça. Nestes termos, a divisão judiciária nunca poderá constituir um entrave ao acesso à justiça, i.e., é ilegítima, à luz das normas referidas, a imposição de obstáculos organizatórios ao acesso à justiça. Ora, é inegável que a solução de o juiz absolver o réu do pedido porque não tem competência para conhecer do pedido à luz de outra causa de pedir implica uma maior delonga na obtenção da decisão e maiores custos processuais. Se é certo que uma justiça tardia é melhor que a denegação da justiça, nunca é a justiça devida, motivo pelo qual só razões ponderosas podem legitimar que se atrase a obtenção da decisão.
Assim, regressamos à questão: será possível defender uma extensão de competência dos tribunais judiciais, de forma que o juiz possa apreciar a causa sob todos os pontos de vista?[12]
Considerando que a competência está assente e que o tribunal conhece o direito (jura novit curia), não será razoável estender a competência do tribunal à análise de todos os aspectos da questão que revestem relevância jurídica? I.e., no caso em estudo, se o tribunal é competente para analisar se determinados factos são susceptíveis de invalidar o contrato individual de trabalho, não poderá também conhecer de outros possíveis fundamentos dessa invalidade?
            Só a atribuição de um valor absoluto ao princípio da especialização de competências, fazendo-o prevalecer ilimitadamente sobre o princípio jura novit curia, conduzirá a essa conclusão. Não nos parece que ela deva ser acolhida. Aliás, na Alemanha, o § 17 (2), 1ª parte da Gerichtsverfassungsgesetz (GVG) diz que o tribunal competente para apreciar a acção é competente para analisar o caso sob todos os pontos de vista juridicamente relevantes. Pretende-se assegurar a concentração das decisões num único tribunal, com as vantagens que lhes são inerentes[13]. 
Entre nós, na ausência de norma expressa, poderia pensar-se que este valor não seria tutelado pelo legislador português. Acresce que, em matéria de coligação, se exige que não haja diferentes competências materiais[14]. Simplesmente, não se trata aqui de vários pedidos mas de um único e mesmo pedido: cindir a apreciação do mesmo pedido (anulação do contrato) significa obrigar a uma visão parcial da questão jurídica. Se há um só pedido, deve o tribunal poder analisá-lo unitariamente[15].
De outra maneira é o princípio jura novit curia que é posto em causa. O tribunal conhece o Direito e não parte do Direito. É certo que este princípio poderia ser forçado a ceder em concreto perante o princípio da especialização. Mas este não tem força suficiente para obrigar a uma apreciação material parcelada da questão: já vimos que o princípio da especialização da competência é não raramente flexibilizado e deve lembrar-se a competência do tribunal para apreciar questões prejudiciais que escapam à sua competência.
Este aspecto é importante: se o réu levantar uma questão da competência de outro tribunal como meio de defesa, o tribunal no qual a questão é suscitada, apesar de ser à partida incompetente, pode decidir. Perguntar-se-á, pois, se não poderá o mesmo suceder se a questão for suscitada, antes, pelo pedido formulado pelo autor. Mesmo que não se vá tão longe quanto defender a própria a bilateralização da regra do art. 96. CPCº[16], pelo menos é possível afirmar a valia muito relativa da especialização de competências no Direito português.
Assim, deve entender-se que, perante o conflito entre os princípios jura novit curia e da economia processual e o princípio da especialização em função da jurisdição, os primeiros devem prevalecer em concreto, impondo-se, em conclusão, o alargamento da competência do tribunal às causas para as quais não era, prima facie, competente.
Aliás, esta solução mais não é do que a criação de uma regra paralela à do art. 4.º, n.º 1, al. e), ETAF, mas agora aplicável aos tribunais judiciais. Este preceito visa “prevenir incongruências”[17], tal como a norma da parte final da al. b), do n.º 1, do art. 4.º, do ETAF, que visa evitar que o tribunal competente para anular o contrato (privado) possa ser de ordem diferente do tribunal competente para conhecer os vícios do procedimento (público) que geraram essa invalidade. Ou seja, admite-se uma extensão de competência da jurisdição administrativa que passa a poder conhecer questões de interpretação, validade e execução de contratos, mesmo que puramente privados. Ora, paralelamente, dever-se-á admitir, também, que os tribunais judiciais terão competência para conhecer de invalidades do procedimento pré-contratual de um contrato individual de trabalho na Administração Pública.   
           
§ 4.º Balanço
Parece ser esta a solução que melhor equilibra os princípios em confronto nestes casos. Apesar de estarmos no domínio do direito adjectivo, as regras gerais quanto à problemática do conflito de princípios devem ter aqui plena aplicação. Repare-se que de modo algum é posta em causa a autonomia do contencioso administrativo por lhe aplicarmos conceitos ou estruturas de raciocínio tipicamente associadas ao direito substantivo[18]. Como resolver o conflito de princípios? O que caracteriza as “normas de princípio” e as distingue das “normas regra”, como explica Alexy[19], é o facto de o princípio apenas indicar um “sentido de regulação”, apontando – mas sem determinar necessariamente – uma solução a considerar: apenas implica uma regulação prima facie, não definitiva[20], apresentando razões que podem ser afastadas por outras opostas, reclamando-se um juízo de ponderação[21]. Tal juízo implica o estabelecimento de uma relação de precedência condicionada, ou seja, tomando em conta o caso, indicam-se as condições sobre as quais um princípio precede outro. Isto significa que, tomadas outras condições, a precedência pode ser diferente. Assim, o princípio P1 tem, num caso concreto, um peso maior que o princípio P2, o que não significa que esta relação se verifique sempre. Não pretendemos, então, estabelecer uma relação de precedência incondicionada, i.e., uma relação abstracta ou absoluta de precedência, entre os princípios mencionados. Não afirmamos que, em abstracto, os princípios da celeridade e da economia processual e do acesso ao Direito e aos tribunais, por exemplo, devam preceder sempre outros princípios, como o da especialização de competência. Enquanto imperativos de optimização[22] os princípios absorvem o que está contido no seu domínio normativo na maior medida possível até à verificação de princípios de sinal contrário. Para concretizar o que cai no domínio operativo de um princípio, podemos formular uma “lei” de colisão[23].  Ou seja, verificados os pressupostos enunciados, dever-se-á concluir por uma extensão da competência do tribunal judicial.
Assim se estabelece uma relação de precedência condicionada entre os princípios em colisão.


[1] Cf. Vasco Pereira da Silva, O Contencioso Administrativo no Divã da Psicanálise. Ensaio Sobre as Acções no Novo Processo Administrativo, 2.ª ed., Coimbra, 2009, p. 488. Note-se que o Autor escreve ainda sem ter em conta a alteração introduzida ao ETAF pelo art. 10.º da Lei n.º 59/2008, de 11 de Setembro. Porém, as considerações mantêm a sua actualidade, uma vez que permanece no art. 4.º, n.º 3, al. d), ETAF uma dualidade de jurisdições. Por um lado, estão sujeitos à jurisdição administrativa os litígios emergentes de contratos de trabalho em funções públicas, enquanto os litígios emergentes de contratos individuais de trabalho, ainda que uma das partes seja uma pessoa colectiva de direito público, estão excluídos desta jurisdição. O Autor considera que estes contratos, independentemente da forma e do regime jurídico aplicável, não deixam de pertencer ao âmbito da função administrativa.
[2] A expressão é de Vasco Pereira da Silva, O Contencioso…, cit., p. 505.
[3] O Contencioso…, cit., p. 505.
[4] Cf. Vasco Pereira da Silva, O Contencioso…, cit. p. 504 ss. A tendência de privatização do emprego público tem-se verificado, por exemplo, em Itália. Cf., neste sentido, Palma Ramalho, Direito do Trabalho. Parte II – Situações Laborais Individuais, 3.ª ed., Coimbra, 2010, p. 373.
[5] Cf. Maria João Estorninho, “A reforma de 2002 e o Âmbito da Jurisdição Administrativa”, em Cadernos de Justiça Administrativa, n.º 35, Setembro/ Outubro de 2002, pp. 3 ss, em especial, p. 6.
[6] Cf. Alberto dos Reis, Comentário ao Código Processo Civil, vol. III, Coimbra, 1960, p. 9.
[7] A teoria do Direito justo surge hoje, e no âmbito em que nos situamos, como problema metodológico e institucional. Não está, naturalmente, em causa analisar o conceito de justiça ou saber qual o seu conteúdo, interrogação que tem ocupado juristas e não juristas desde sempre. A questão é, antes, a de saber se existe um método para alcançar a justiça ou, mais modestamente, para obtermos a “melhor solução”. Cf., v.g., Michele Taruffo, “Idee per una teoria della decisione giusta”, Revista Trimestrale di Diritto e Procedura Civile, 1997, ano 51, n.º 2, pp. 315 -328, sublinhando que, num contexto em que circulam ideias de justiça insatisfatórias, redutoras, unilaterais e com pouca eficácia explicativa, é necessário encarar o problema da possibilidade de se alcançar a decisão justa. Tal não implica, todavia, enveredar pelo relativismo axiológico (como faz Zippelius), devendo recordar-se até as tentativas de ultrapassar a rígida contraposição entre um ponto de vista “absolutista” e outro rigidamente relativista, como aquela que foi protagonizada por Ryffel e pela ideia de aproximação ao “recto em absoluto”. Particularmente relevantes, na busca da melhor solução, são as teorias do discurso e, em particular, as teorias intersubjectivas da comunicação defendidas por autores como Kaufmann, Filosofia do Direito (trad. port), Lisboa, 2004 ou Habermas, Facticidad y Validez (trad. esp.), Madrid, 1998, que salientam que o Direito está submetido a uma “coacção” idealista, que o obriga a legitimar os seus imperativos. Como refere Engisch, Introdução ao Pensamento Jurídico (trad. port.), Lisboa, 1964, p. 326,é frutuosa a consideração da teoria do Direito justo sob o aspecto metodológico” e isto, acrescentaríamos, sob uma dupla perspectiva: por um lado, é essencial perguntar como é possível obter a melhor decisão de uma perspectiva substantiva, explorando, designadamente, o papel do sistema, enquanto conjunto de todos os valores fundamentais constitutivos de uma ordem jurídica e lembrando que a decisão justa é a decisão valorativamente adequada e conforme à unidade do sistema, i.e., como aponta Canaris, Pensamento sistemático e conceito de sistema na ciência do Direito (trad. port.), Lisboa, 1989, pp. 178 ss., a solução “justa perante o sistema” é também a solução “materialmente justa”; por outro lado, e de uma perspectiva institucional ou organizativa, cabe determinar as condições que o ordenamento jurídico deve criar para a realização da justiça pelos tribunais, relevando regras como a independência, imparcialidade, inamovibilidade e fungibilidade do juiz, o princípio do contraditório ou o dever de fundamentação das decisões, por exemplo. Sobre a justiça como problema institucional, cf. Barbas Homem, “Reflexões sobre o justo e o injusto: a injustiça como limite do Direito”, RFDUL, vol. 39, n.º 2, 1998, pp. 588-650 (614 ss.) e José Lamego, “Fundamentação ‘Material’ e Justiça da Decisão. A meta de decisões ‘materialmente justas’ e os seus limites”, Revista Jurídica, n.º 8, 1986, pp. 69-93 (83 ss.). 
[8] Do princípio Kompetenz-Kompetenz decorre que cada tribunal aprecia a sua competência com total autonomia e que nenhum tribunal pode coadjuvar outro na apreciação da sua competência (cf. Miguel Teixeira de Sousa, A competência declarativa dos tribunais comuns, Lisboa, 1994, p. 37). Este princípio é expressamente excepcionado em três situações: quando a apreciação da competência resulta da decisão de um conflito de competência ou jurisdição (art. 115.º), quando a decisão do tribunal sobre a competência tem uma função preventiva desse conflito (art. 107.º, n.º 1) e ainda nos casos, já mencionados em texto, em que o tribunal remete o processo para o tribunal competente (art. 111.º, n.os 1, 2ª parte, e 3).      
[9] Cf. Miguel Teixeira de Sousa, Estudos sobre o novo Processo Civil, Lisboa, 1997, p. 133; José Lebre de Freitas, Código de Processo Civil Anotado, vol. 1.º (arts 1.º a 380.º), Coimbra, 1999, p. 216.
[10] Cf. Mapa VI do Decreto-Lei n.º 186.º-A/99, de 31 de Maio, parcialmente alterado pelo Decreto-Lei n.º 25/2009, de 26 de Janeiro.
[11] Cf., sobre este conflito de princípios, José Lebre de Freitas/ João Redinha/ Rui Pinto, Código de Processo Civil Anotado, vol. 1.º (arts 1.º a 380.º), Coimbra, 1999, pp. 180-188, em especial pp. 181 e 186. 
[12] Esta é questão semelhante à que se coloca, em processo civil, nos casos et-et (“e-e”). São casos de qualificações materiais cumulativas, i.e., situações em que os factos invocados pelo autor permitem simultaneamente duas qualificações, que não se excluem entre si. Por exemplo, o empregador propõe num tribunal de competência genérica uma acção de responsabilidade contra o trabalhador invocando que este, no exercício das suas funções, destruíra encomenda que deveria ser entregue ao cliente no dia seguinte. O facto tanto consubstancia responsabilidade aquiliana (sendo competente o tribunal de competência genérica) como responsabilidade contratual (sendo competente o tribunal de trabalho). Pergunta-se se o tribunal pode considerar-se incompetente, apesar de ser competente para analisar a questão sob um dos pontos de vista (o da responsabilidade delitual). Mais se questiona se, aceitando a competência, o tribunal apenas está autorizado a analisar o caso do ponto de vista da responsabilidade delitual e não também da responsabilidade contratual – em nome do princípio da especialização de competências – ou se, pelo contrário, não haverá determinados valores que apontam no sentido oposto. Sobre a questão, cf. Madalena Perestrelo de Oliveira, “Conflitos de princípios na repartição da competência material dos tribunais: os casos aut-aut e et-et”, O Direito, ano 142.º, 2010, III, pp. 593-615.
[13] Manfred Wolf, in Münchener Kommentar zur Zivilprozessordnung mit Gerichtsverfassungsgesetz und Nebengesetz, vol. III, Munique, 2001, § 17 GVG, p. 1565.
[14] Cf. art. 30.º, n.º 1, que exige como pressuposto da coligação a compatibilidade processual, que se refere à competência absoluta do tribunal. A coligação não será admissível se o tribunal não for, por exemplo, materialmente competente para apreciar todos os pedidos. Cf. Miguel Teixeira de Sousa, As Partes, o Objecto e a Prova na Acção Declarativa, Lisboa, 1995, pp. 87 ss. 
[15] Em sentido contrário, ainda que a propósito do processo civil, mas com considerações adaptáveis ao nosso caso, cf. Remédio Marques, Acção Declarativa à Luz do Código Revisto, Coimbra, 2009, p. 300. Para o Autor o tribunal é materialmente competente se no seu âmbito de competências couber, pelo menos, uma das qualificações jurídicas. Porém, o tribunal, ainda que competente, apenas pode analisar a causa à luz da qualificação para que seja materialmente competente. 
[16] Esta bilateralização implicaria que também o autor, e não apenas o réu, poderia suscitar questões da competência material de outro tribunal e, ainda assim, ver essas questões decididas pelo juiz da causa principal.
[17] Cf. Vieira de Andrade, A Justiça Administrativa, 11.ª ed., Coimbra, 2011, p. 101. Cf., também, a crítica de Mário Aroso de Almeida, Manual de Processo Administrativo, Coimbra, 2010, p. 166, nota 98.
[18] Como salienta Paula Costa e Silva, Acto e Processo. O Dogma da Irrelevância da Vontade na Interpretação e nos Vícios do Acto Postulativo, Coimbra, 2003, p. 448, ainda que a propósito da interpretação de actos postulativos, a autonomia do processo face ao direito material não deve obstar a que, havendo identidade de situações, se recorra a estruturas construídas, inicialmente, para outras áreas do Direito.
[19] Teoría de los Derechos Fundamentales (trad. espanhola da ed. alemã de 1993), Madrid, 2002, pp. 81 e ss.
[20] Por isso, os princípios apresentam uma “capacidade ordenatória” particularmente alargada (por confronto com as regras), que lhes permite realizar, relativamente ao conjunto normativo, tarefas de organização, de identificação e de consistência que as regras, em virtude da sua especificidade normativa, não podem realizar (David Duarte, A Norma de Legalidade Procedimental Administrativa, Coimbra, 2007, p. 128).
[21] Diferentemente do que sucede com as regras se aplicam em termos de “tudo ou nada” (all or nothing fashion). Cf. Dworkin, Taking Rights Seriously, Cambridge, 2002, p. 24. 
[22] Cf. David Duarte, A Norma…, cit., p. 149.
[23] A expressão é de Alexy, Teoria…, cit., p. 94, que salienta a vantagem de criar uma lei de colisão, como forma de concretizar princípios, que, de outra forma, não passariam de mandatos abstractos. 

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