quinta-feira, 21 de abril de 2011

O mito do recurso hierárquico necessário – Parte III – Balanço final e posição sufragada



A interpretação restritiva do afastamento do recurso hierárquico necessário, no sentido de que este se mantém quando haja sido expressamente previsto pelo legislador em leis avulsas[1], merece-nos as maiores críticas. Nomeadamente:
-       Como compatibilizar a suposta regra geral da imediata admissibilidade de acesso à justiça administrativa, independentemente de recurso hierárquico prévio, com as disposições especiais que manteriam tal necessidade? Com a consagração da possibilidade de impugnação contenciosa imediata, qual a ratio de manter essa exigência? Considerar que o recurso hierárquico passou de necessário a útil (sendo apenas facultativo) e, ao mesmo tempo, que ele continua a ser obrigatório, enquanto pressuposto processual, não faz qualquer sentido.
-       O argumento aduzido para justificar a existência de dois regimes de impugnação de actos administrativos é o seguinte: ter-se-ia revogado a regra dita geral do recurso hierárquico necessário do CPTA, mas não as regras consideradas especiais. Este é um argumento meramente formal, já que antes da reforma não havia regras especiais, pois estas eram conformes ao regime considerado geral. Não implicará a revogação do regime geral a revogação de todas as normas que prescrevem o mesmo regime jurídico? Este argumento só poderia valer para excepções criadas pelo legislador após a reforma que eliminou a necessidade do recurso necessário.
-       Se a ratio legis da exigência do recurso hierárquico necessário era a de permitir o acesso à justiça administrativa e se o CPTA estabelece que essa exigência já não consubstancia um pressuposto processual de impugnação de actos administrativos, tal significa que a obrigatoriedade do recurso hierárquico prevista em legislação avulsa não tem já efeitos contenciosos. Nesse sentido, tais normas caducariam, por falta de objecto.
-       Isto para além da questão da sua inconstitucionalidade[2], por violação do conteúdo essencial do direito fundamental da tutela plena e efectiva dos direitos dos particulares e do princípio da igualdade de tratamento dos particulares perante a Administração e perante a justiça administrativa.
-       O CPTA, ao concretizar o direito fundamental de acesso aos meios contenciosos (art. 268.º, n.º 4, CRP), prevê o princípio de promoção do acesso à justiça (art. 7.º CPTA) e proscreve as diligências inúteis (art. 8.º, n.º 2, CPTA). A defesa da manutenção de regimes avulsos que impõem o recurso hierárquico como condição de acesso à via contenciosa não é mais do que a defesa da obrigatoriedade de um pressuposto, que pode ser inútil.
Concluindo, hoje permite-se a imediata impugnação dos actos administrativos, estando definitivamente afastada a exigência de recurso hierárquico necessário. A solução harmonizadora, de iure condito, nos casos de legislação avulsa que preveja a obrigatoriedade de recurso hierárquico, deve ser a de que tais normas caducaram. Dessa forma, o recurso hierárquico é facultativo em todos os casos.


[1] Cfr. Mário Aroso de Almeida, Manual de Processo Administrativo, Coimbra, 2010, pp. 302 a 308, e Vieira de Andrade, A Justiça Administrativa (Lições), 11.ª edição, Coimbra, 2011, pp. 221 a 222.
[2] Adoptamos os argumentos deduzidos por Vasco Pereira da Silva em, por exemplo, O Contencioso Administrativo no Divã da Psicanálise, 2.ª edição, Coimbra, 2009, pp. 348 e 349.

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