terça-feira, 19 de abril de 2011

O mito do recurso hierárquico necessário - Parte I - Acórdão do TC n.º 499/96


ACÓRDÃO Nº 499/96

Proc. nº 383/93
1ª Secção
Rel.: Consª Maria Fernanda Palma



Acordam na 1ª Secção do Tribunal Constitucional:


I
Relatório

1. A, por si e na qualidade de representante de seus filhos, interpôs, no Tribunal Administrativo do Círculo de Lisboa, recurso contencioso de anulação de deliberação da Direcção dos Serviços de Previdência da Caixa Geral de Depósitos, proferida em 12 de Março de 1991, no uso de delegação de poderes conferida pela Administração da Caixa Geral de Depósitos.
Esta deliberação determinou a suspensão do abono de pensão de preço de sangue, de que beneficiava a recorrente por morte do seu marido, tenente-coronel da Força Aérea, em acidente de serviço, para produzir efeitos até nela se esgotar a indemnização paga por B, Grupo Segurador,, no montante de 10.400.000$00, a título de reparação de danos patrimoniais futuros. A entidade recorrida declarou, em esclarecimento complementar daquela deliberação, que a pensão de preço de sangue não é cumulável com a indemnização devida por terceiro responsável destinada a reparar o mesmo dano. Para fundamentar tal entendimento, invocou um "princípio geral sobre enriquecimento sem causa", os artigos 15º do Decreto-Lei nº 38.523, 9º, nº 6, do Decreto-Lei nº 404/82 e 61º e 62º do Estatuto da Aposentação e o Parecer nº 21/80 da ProcuradoriaGeral da República.
Da fundamentação do recurso salientam-se os seguintes argumentos:

"(...) o D.L. 38523, de 23/11/51, não é aplicável, "in casu", à recorrente, já que o diploma legal que regia as pensões de sangue era o D.L. 47084, de 9/7/66, que veio regular, em bases novas, os princípios que informavam o Decreto 17335, de 10/9/1929.

(...) Não é, pois, aplicável o parecer da ProcuradoriaGeral da República nº 21/80, de 27/3/80 (in BMJ, 300, 98), emitido a propósito do art. 15º do D.L. 38523.

(...) o direito aplicável à recorrente está vertebrado no D.L. 404/82, de 24 de Setembro, o qual veio revogar o D.L. 47084.

(...) O respectivo art. 9º, ao contrário do afirmado no ofício junto como doc. nº 3, não estatui a suspensão do pagamento de tais pensões.

(...) Antes de mais porque os nºs 6 e 8 do D.L. 404/82 foram introduzidos pelo D.L. 266/88, de 28 de Julho, portanto em data posterior ao facto criador do direito à pensão (a morte do acidentado).

(...) Pelo que tais normas novas não seriam aplicáveis à recorrente, por força do disposto no artigo 12º, nº 2, do C.C..

(...) Por outro lado, o nº 8 do D.L. 404/82 (na redacção do D.L. 266/88), que foi erradamente indicado como nº 6 (...), também não permite a interpretação que dele faz a recorrida.
(...) O que não é cumulável, na letra e no espírito da nova redacção, é qualquer outra pensão atribuída pela prática dos mesmos actos ou por virtude das suas consequências.

(...) Pretende a recorrida suspender o pagamento da pensão só porque a recorrente recebeu uma indemnização civil de uma seguradora decorrente de danos morais e patrimoniais causados por um terceiro.

(...) A ser como quer a recorrida, o legislador estaria a beneficiar o Estado pelos acidentes de viação causados por indivíduos.

(...) Interpretação essa que não cabe no espírito do legislador, designadamente na "ratio" do art. 9º do D.L. 404/82.

(...) A deliberação recorrida violou, pois, o disposto no art. 9º do D.L. 404/82, designadamente o seu nº 8, bem como o art. 12º, nº 2, do C.C.

(...) Bem como viola o disposto no art. 63º, nº 4, da C.R.P."

2. Notificada para o efeito, a entidade recorrida apresentou resposta em que começou por sustentar a não definitividade do acto recorrido e a consequente ilegalidade do recurso, nos seguintes termos:

"(...) o acto impugnado carece de definitividade para efeitos de impugnação contenciosa, uma vez que está sujeito a recurso hierárquico necessário, por expressa exigência legal, não conformando, por isso, negativa e imediatamente, a esfera jurídica dos recorrentes.

Com efeito:

a) As pensões por morte como consequência de acidente em serviço são reguladas, quanto ao montante, concessão e fruição, pelo regime estabelecido para as pensões de preço de sangue, nos termos do art. 15º do Decreto-Lei nº 38.523, de 23 de Novembro de 1951, na redacção que lhe foi dada pelo Decreto-Lei nº 140/87, de 20 de Março;

b) Pelo Decreto-Lei nº 140/87 - art. 1º -, a competência que, em matéria de pensões de preço de sangue e outras, cabia ao Ministério das Finanças, foi transferida para o Montepio dos Servidores do Estado (MSE);

c) O Montepio dos Servidores do Estado é um instituto público criado pelo Decreto-Lei nº 24.046, de 21 de Junho de 1934, incorporado na Caixa Nacional de Previdência como instituição autónoma especial, e não dispõe de órgãos superiores de gestão próprios, cabendo, desde a sua criação, o exercício dessa função ao Conselho de Administração da Caixa Geral de Depósitos, Crédito e Previdência - cfr. os arts. 1º, 5º e 59º e segs. do citado D.L. nº 24.046; os arts. 2º e 4º do D.L. nº 48.953, de 5 de Maio de 1959 (Lei Orgânica da Caixa Geral de Depósitos, Crédito e Previdência); arts. 1º e 51º e segs. do D.L. nº 142/73, de 30 de Março (Estatuto das Pensões de Sobrevivência).

De acordo com o disposto no art. 22º da Lei Orgânica da Caixa compete ao Conselho de Administração praticar todos os actos necessários à gestão e direcção superior do estabelecimento.

No âmbito da gestão do Montepio dos Servidores do Estado, as resoluções são tomadas por dois administradores, nos termos dos arts. 59º do Dec.-Lei nº 24.046, de 21 de Junho de 1934, na redacção que lhe foi dada pelo Dec.-Lei nº 214/83, de 25 de Maio; 108º do Dec.-Lei nº 498/72, de 9 de Dezembro, na redacção que lhe foi dada pelo Dec.-Lei nº 214/83; 51º do Dec.-Lei nº 142/73, de 31 de Março, na redacção que lhe foi dada pelo Dec.-Lei nº 214/83.

Os quais poderão delegar os seus poderes, sendo porém obrigatória a intervenção do Conselho de Administração se disposição especial o exigir, nos termos das disposições legais mencionadas.

d) Ora, das resoluções que resolvam sobre a diminuição ou perda da pensão cabe recurso hierárquico para o Conselho de Administração - art. 59º do Dec.-Lei nº 24.046; art. 108º-A do Dec.-Lei nº 498/72; arts. 1º e 54º-A do Dec.-Lei nº 142/73.

Ainda que a perda da pensão não seja definitiva e não importe, por consequência, a extinção da qualidade de pensionista, como resulta do confronto das alíneas a) e b) do citado art. 54º-A do Dec.-Lei nº 142/73.

e) Em suma, o acto impugnado não era definitivo, não sendo, por isso, e de acordo com o disposto no art. 5º do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais - Dec.-Lei nº 129/84, de 27 de Abril - e no art. 25º, nº 1, da Lei de Processo nos Tribunais Administrativos - Dec.-Lei nº 267/85, de 16 de Junho - directamente recorrível na via contenciosa.

(...) Nestes termos, o recurso deve ser rejeitado por manifesta ilegalidade, em conformidade com o parágrafo 4º do art. 57º do RSTA."



Quanto à questão de fundo, a entidade recorrida defendeu a impossibilidade de cumulação da pensão por morte resultante de acidente em serviço com indemnização devida por terceiro responsável, destinada a reparar o mesmo dano, com base em argumentação já aflorada no citado esclarecimento complementar da deliberação impugnada.

3. A recorrente pronunciou-se em seguida sobre a questão prévia suscitada, propugnando a natureza definitiva e executória do acto impugnado.
Eis os trechos mais relevantes da respectiva argumentação:

"(...) Na formulação introduzida pelo D.L. 214/83, de 25 de Maio, o artigo 103º [do Decreto-lei nº 498/72] passou a ter a seguinte redacção: 'De quaisquer resoluções definitivas e executórias da administração da Caixa, ou tomadas por delegação sua, haverá recurso contencioso, nos termos gerais'.

(...) Assim sendo, sempre a decisão é recorrível contenciosamente, ainda que tomada por dois administradores, já que o foi por delegação de competências (...).

(...) Donde dever concluir-se que o acto praticado foi executório e definitivo.

(...) É esse o sentido do artigo 51º, nº 1, alínea b), do D.L. 129/84, de 27 de Abril, por analogia e por maioria de razão, segundo a previsão da alínea a) do mesmo preceito legal.

(...) É verdade que foi introduzido o artigo 108º-A pelo D.L. 214/83, de 25 de Maio.

(...) Esse aditamento ao D.L. 498/72, de 9 de Dezembro, todavia, não altera a regra da definitividade consagrada no artigo 103º, introduzida pelo D.L. 214/83.

(...) Já que a deliberação foi tomada no uso de delegação de competências.

(...) Aliás, nem sequer é aqui aplicável o mencionado artigo 108º-A, porquanto não se trata de uma decisão que vise a diminuição ou a perda de uma pensão.

(...) É que a decisão impugnada limitou-se a suspender a pensão, não se limitou a reduzi-la ou eliminá-la."

4. Nas subsequentes alegações de recurso, recorrente e recorrida reiteraram, no essencial, os argumentos anteriormente utilizados, mantendo as suas posições.

5. O Tribunal Administrativo do Círculo de Lisboa, na decisão final (de 30 de Abril de 1992), veio a acolher a tese da entidade recorrida quanto à questão prévia suscitada. Assim, rejeitou o recurso, com fundamento em ilegal interposição, por falta de definitividade e executoriedade do acto recorrido, que não seria, portanto, susceptível de recurso contencioso.
Na fundamentação, argumentou-se do seguinte modo:

"(...) Vejamos (...) se se verifica a questão prévia da falta de definitividade e executoriedade do acto impugnado.

Vimos atrás que, conforme ofício de 26-03-91 (...), por decisão de 12-03-91, da Direcção dos Serviços de Previdência da Caixa Geral de Depósitos, foi determinada a suspensão do abono da pensão de preço de sangue que vinha sendo paga à recorrente, por morte do seu marido, António Augusto Martins Coutinho, até perfazer a reposição da importância da indemnização que lhe havia sido paga pelo B, Grupo Segurador.

Esta resolução da Direcção dos Serviços de Previdência significou a perda da referida pensão por parte da recorrente, pensão que só voltará a ser-lhe abonada quando, ao preço mensal do valor da mesma pensão, se considerar reposta a indemnização recebida e atraz referida. E significa também que as pensões entretanto perdidas não serão recuperadas.

Ora, em casos como este, a resolução da Direcção dos Serviços de Previdência, embora tomada no uso de delegação de poderes, conferida pela Administração da Caixa Geral de Depósitos, resolução por delegação, que, em princípio, teria as necessárias características de definitividade e executoriedade, não é acto definitivo e executório, pois dele há recurso hierárquico necessário para o Conselho de Administração da Caixa Geral de Depósitos.

Isto resulta claro do art. 54º-A do Estatuto das Pensões de Sobrevivência, aprovado pelo Dec.-Lei nº 142/73, de 31-03, na redacção do Dec.-Lei nº 214/83, de 25-05, conjugado com as disposições do art. 59º do Dec.Lei nº 24.046 (Montepio dos Servidores do Estado), também na redacção dada pelo referido Dec.-Lei nº 214/83, e dos arts. 102º a 110º do Estatuto da Aposentação, especialmente do art. 108º-A, aditado pelo já aludido Dec.-Lei nº 214/83.

E não colhe a argumentação da recorrente, quando invoca o art. 103º do Estatuto da Aposentação, pois este refere-se simplesmente a "resoluções definitivas e executórias", entre as quais não pode contar-se a impugnada.

Igualmente não colhe a argumentação da mesma recorrente quando alega que "Aliás, nem sequer é aqui aplicável o mencionado art. 108º-A, porquanto não se trata de uma decisão que vise a diminuição ou a perda de uma pensão", nem que "a decisão impugnada limitou-se a suspender a pensão, não se limitou a reduzi-la ou eliminá-la".

Efectivamente, a decisão determinou a "suspensão do abono da pensão", mas com perda definitiva das prestações respectivas até total reposição da importância da indemnização recebida. Estas prestações foram eliminadas, foram determinadas perdidas até à completa reposição daquela.

Assim e por força das disposições citadas, o acto impugnado não é definitivo e executório e, em consequência, também não é recorrível, face ao disposto no art. 25º da LPTA.

(...) Por todo o exposto tem de ser rejeitado o presente recurso, por ilegal."
6. Desta sentença interpôs a recorrente recurso jurisdicional para o Supremo Tribunal Administrativo, retomando a sua argumentação nas respectivas alegações, que concluiu nestes termos:

"A - Não é aplicável ao caso vertente o artigo 108ºA do D.L. 214/83, de 25 de Maio.

B - Com efeito a deliberação tomada por dois administradores no uso de delegação de competências, constitui um acto definitivo e executório.

C - Pelo que o recurso interposto se enquadra na letra e no espírito do artigo 103º do mesmo diploma legal.

D - Consideram os recorrentes que o recurso hierárquico necessário previsto no artigo 108º-A apenas respeita às deliberações previstas nos números 3 e seguintes do artigo 108º daquele Decreto-Lei, mas não às constantes dos números 1 e 2, que se consideram decisões do próprio órgão, ainda que por delegação.

E - É este o entendimento perfilhado pelo próprio legislador de processo administrativo, quando consagra a regra de recurso contencioso nos casos de delegações de competências previstas no artigo 51º, nº 1, do D.L. 129/84, de 27 de Abril.

F - Por outro lado, ainda que tal raciocínio não colhesse, o que só se admite por hipótese, a deliberação recorrida não cabe na interpretação restritiva, mas literal e racional, do artigo 108º-A do D.L. 214/83.

G - O que se deliberou foi suspender a pensão, não foi diminui-la.

H - Mas ainda que continuasse a improceder esta argumentação, sempre o artigo 108º-A em causa seria inconstitucional por fazer depender de um preceito processual gracioso um direito fundamental.

I - É que, sendo a pensão de sangue um direito fundamental (art. 63º, nº 4, da C.R.P.), não pode ele ser restringido por força de uma norma - o artigo 108º-A - que, de facto, diminui ou elimina aquele direito fundamental (arts. 17º e 18º da C.R.P.)."
7. Por sua vez, a entidade recorrida apresentou igualmente alegações, desenvolvendo também a argumentação já anteriormente expendida, que condensou assim nas suas conclusões:

"1ª - Tendo determinado a perda da pensão, por um longo período, a resolução impugnada estava sujeita a recurso hierárquico necessário, nos termos do art. 59º do D.L. nº 24.046, de 21 de Junho de 1934, na redacção que lhe foi dada pelo D.L. 214/83, de 25 de Setembro, por remissão para o art. 108º-A do Estatuto da Aposentação, bem como do art. 54º-A do Estatuto das Pensões de Sobrevivência, aprovado pelo D.L. nº 142/73, de 30 de Março;

2ª - Os actos administrativos sujeitos a recurso hierárquico necessário não traduzem a definição última da relação jurídicoadministrativa concreta, não sendo, portanto, definitivos e executórios.

3ª - Não tendo sido, como efectivamente não foi, objecto de recurso hierárquico, a resolução impugnada não era definitiva e executória, pelo que não era directamente recorrível na via contenciosa.

4ª - Os artigos 108º-A do Estatuto da Aposentação e 54º-A do Estatuto das Pensões de Sobrevivência, visam assegurar uma maior protecção dos particulares, na medida em que obrigam a uma especial ponderação nas resoluções que podem originar efeitos particularmente negativos na esfera desses particulares, pelo que não contendem com a Constituição da República Portuguesa.

5ª - A sentença proferida pelo Meritíssimo Juiz 'a quo' traduz, pois, a correcta interpretação e aplicação da lei."


8. O Supremo Tribunal Administrativo negou provimento ao recurso jurisdicional, mantendo a rejeição do recurso contencioso por ilegal interposição. Sustentou a não definitividade e a não executoriedade do acto impugnado, donde deduziu a insusceptibilidade de recurso contencioso do acto impugnado, e concluiu pela não inconstitucionalidade do artigo 108º-A do Decreto-Lei nº 498/72, de 9 de Dezembro.
Na fundamentação, argumentou-se nos termos seguintes:

"(...) A impugnação da recorrente assenta em quatro ordens de razões, a saber:

a) As deliberações tomadas por dois administradores da Caixa são resoluções definitivas, directamente recorríveis;

b) O art. 108º-A do DL nº 498/72, aditado pelo DL nº 214/83, é apenas aplicável nos casos previstos nos nºs 3 e segs. do art. 108º (actos praticados por delegação dos dois administradores);

c) A decisão contenciosamente impugnada não se traduz em perda de pensão;

d) A interpretação dada ao citado art. 108º-A é inconstitucional por diminuir ou eliminar um direito fundamental, fazendo-o depender de um preceito processual gracioso.

Nenhuma destas razões procede, como se passa a demonstrar.

(...) o DL nº 214/83 (...) alterou e revogou alguns preceitos (aditando outros) do Estatuto da Aposentação (EA), do Estatuto das Pensões de Sobrevivência (EPS) e do DL nº 24.046.

O art. 103º do EA passou a estabelecer que 'de quaisquer resoluções definitivas e executórias da administração da Caixa ou tomadas por delegação sua, haverá recurso contencioso nos termos gerais'.

A Administração da Caixa é, em princípio, representada por dois administradores (art. 108º, nº 1, do EA), que podem delegar os respectivos poderes nos directores, directores-adjuntos ou subdirectores (nº 3), exigindo- se, porém, a intervenção do conselho de administração nos casos enumerados nas als. a), b) e c) do nº 2 daquele preceito.

Por seu turno, o novo art. 108º-A impôs no seu nº 1 o recurso hierárquico necessário para o conselho de administração das resoluções que:

'a) Resolvam sobre a diminuição ou perda de pensão;

b) Resolvam sobre a negação ou extinção da qualidade de subscritor; (...)'


No que concerne ao EPS, a nova redacção dada ais arts. 51º e 54º correspondem integralmente à que foi introduzida nos citados arts. 108º e 103º do EA.

O art. 54º-A, aditado ao EPS, estabeleceu, também em consonância com o disposto no art. 108º-A do EA, que 'haverá recurso hierárquico necessário para o conselho de administração das resoluções que:

a) Resolvam sobre a diminuição ou perda da pensão;

b) Resolvam sobre a negação ou extinção da qualidade de contribuinte.'


Importa, ainda, salientar que o art. 59º do DL nº 24.046, passou a ter a seguinte redacção:

's resoluções da administração da Caixa aplicar-se-ão os artigos 102º a 110º do Estatuto da Aposentação, incluindo-se no elenco do artigo 108º-A (recurso hierárquico necessário) a resolução sobre denegação ou extinção da pensão.'


Deste quadro legal - e agora apenas no que concerne ao Montepio dos Servidores do Estado - resulta, em síntese, o seguinte: (...)

(...) Não constituem resoluções definitivas e executórias da Caixa as que forem tomadas por dois administradores ou por sua delegação e decidam sobre a matéria prevista nas alíneas a) e b) do art. 54º-A, pois delas cabe recurso hierárquico necessário para o conselho de administração.

(...) O argumento que a recorrente pretende extrair do disposto no art. 51º, nº 1, do ETAF não merece, de igual modo, acolhimento.

Com efeito, a citada disposição é apenas uma regra sobre a competência dos tribunais administrativos de círculo e dela o que se pode inferir, quanto à definitividade dos actos administrativos, é apenas que há actos administrativos praticados por delegação de poderes que são directamente recorríveis e nada mais.

(...) Contesta, ainda a recorrente que se trate, no caso, de uma resolução sobre perda de pensão.

Mas sem qualquer razão.

Na verdade, a decisão contenciosamente recorrida fez cessar o pagamento da pensão de preço de sangue atribuída por resolução definitiva à recorrente, por falecimento do seu marido, em acidente de serviço.

Fundou-se essa decisão no facto de a recorrente ter sido ressarcida de danos patrimoniais futuros por uma seguradora e de não ser cumulável a indemnização paga com a pensão de preço de sangue a que se atribuiu idêntica natureza ressarcitória.

Determinou-se, assim, a cessação do pagamento da pensão pelo tempo necessário a que se perfizesse o montante da indemnização recebido pela recorrente.

Trata-se, pois, e independentemente da razão que a determinou, de uma perda temporária de pensão que - digase de passagem - irá manter-se por largos anos.

Ora, da conjugação das als. a) e b) do art. 54º-A do EPS resulta claramente que, para haver recurso hierárquico necessário, se não exige que a perda da pensão seja definitiva (caso em que se extinguiria a qualidade de pensionista).

Por outro lado, considerando a já aludida motivação da exigência de recurso hierárquico - o especial gravame que as resoluções previstas infligem aos interessados - mal se compreenderia que a mera diminuição de uma pensão bastasse para sujeitar a decisão a um tal meio de impugnação e se subtraísse à reponderação do conselho de administração uma perda total, ainda que temporária, dessa mesma pensão.

Entende, por último, a recorrente que a exigência de recurso hierárquico seria inconstitucional por "diminuir" ou "eliminar" um direito fundamental.

É manifesta a improcedência de uma tal alegação.

A exigência de recurso hierárquico necessário não toca, nem de longe nem de perto, com o direito à pensão de preço de sangue.

Ela constitui até um meio suplementar de tutela ou salvaguarda do direito, no ponto em que assim é facultado a quem dele se arroga submeter à consideração de uma outra instância (o órgão de gestão máximo) a decisão lesiva, que só se tornará definitiva com a resolução dessa instância.

O que, porventura, poderia dizer-se era que deste modo se atrasa o acesso ao tribunal (o que de qualquer forma é bem diferente da diminuição ou eliminação do direito à pensão).

Certo é, porém, que a interposição do recurso hierárquico, porque necessário, acaba até por prevenir, temporariamente, a lesão, pelo efeito suspensivo daquele meio de impugnação.

De todo o modo, nem é este o aspecto - repete-se - que a recorrente versa na sua alegação de inconstitucionalidade - esta reporta-se ao próprio direito à pensão que em nada é afectado (nem a recorrente diz por que o seria) com a necessidade de um recurso gracioso."



9. É desta decisão que vem o presente recurso, ao abrigo dos artigos 280º, nº 1, alínea b), da Constituição e 70º, nº 1, alínea b), da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro, para que o Tribunal Constitucional aprecie a questão da iconstitucionalidade do artigo 108º-A do Decreto-Lei nº 498/72, de 9 de Dezembro, aditado pelo DecretoLei nº 214/83, de 25 de Maio, por alegada violação do artigo 63º, nº 4, conjugado com os artigos 17º e 18º, da Constituição.
Neste Tribunal, a recorrente e a entidade recorrida produziram alegações, a primeira propugnando a inconstitucionalidade da norma em apreço e a segunda sustentando a sua conformidade constitucional.
A recorrente terminou as suas alegações com as seguintes conclusões:

"A - O direito à pensão de preço de sangue é um direito social fundamental, por dever considerar-se integrado no artigo 63º, nºs 1 e 4, da C.R.P.;

B - O qual é directamente aplicável à recorrente por força do artigo 18º, nº 2, da C.R.P., já que é um direito análogo aqueles que vêm consagrados no artigo 17º do diploma fundamental;

C - Com efeito, sendo um direito integrante do sistema de segurança social, que regula as situações de carências dos cidadãos, este tem aquela natureza;

D - Fundamentando a suspensão de tal direito no artigo 9º, nº 8, do D.L. nº 404/82, de 24/9, alterado pelo D.L. 266/88, de 28 de Julho, que regula as pensões do preço de sangue, o acto administrativo e as decisões judiciais que não conheceram dessa questão de fundo violaram a legalidade;

E - Com efeito a cumulação de pensões ali previstas nada têm a ver com ressarcimento dos danos materiais concretos e dos danos morais, entre os quais se contam a dôr sofrida e o direito à vida, como as pensões referidas em tal normativo de direito ordinário;

F - É que a categoria de um direito social fundamental não pode confundir-se com o direito a receber uma indemnização por facto ilícito e por força do instituto da responsabilidade civil;

G - Já que os direitos sociais emergentes do sistema da segurança social se destinam basicamente a suprir carências económicas resultantes de factos caracterizados no respectivo ordenamento jurídico;

H - Aliás, ainda que por hipótese académica fosse de aplicar o artigo 9º, nº 8, da anterior alínea D), sempre seria de aplicar prevalentemente o direito consignado no artigo 63º, nºs 1 e 4, da C.R.P., por ser directamente aplicável e sobrestar ao ordenamento jurídico ordinário;

I - Mas também o art. 108º-A do D.L. 214/83, de 25/5, é inconstitucional, devendo aplicar-se, em seu lugar, o artigo 103º do mesmo diploma;

J - Na medida em que o acto, que foi praticado pela Caixa Nacional de Previdência, no uso de poderes delegados pela Caixa Geral de Depósitos, dever considerar-se um acto definitivo e executório;

K - Mas também e essencialmente porque o mencionado artigo 108º-A, ao sobrestimar a forma processual em detrimento da essencialidade de um direito constitucional, qual seja o artigo 20º, nº 2, da C.R.P., viola este normativo fundamental;

L - Não estando em causa o artigo 205º, nº 4, da C.R.P., cujos instrumentos pré ou para-jurisdicionais não podem conduzir à redução, à suspensão ou à eliminação do direito fundamental consagrado no artigo 63º da C.R.P.;

M - Acresce que o acto administrativo da suspensão da pensão, bem como as decisões judiciais que o suportaram, por não terem conhecido da questão de fundo, violaram manifestamente a legalidade;

N - Ao fundar-se o acto administrativo no artigo 9º, nº 8, do D.L. 404/82, de 24/9, violou-se o princípio da não retroactividade das leis;

O - Já que o facto gerador do direito à pensão de preço de sangue ocorreu com a morte do marido da recorrente em 3/8/87;

P - Ora, tendo a norma da anterior conclusão N) entrado em vigor em momento posterior a esse evento causal, não era aplicável à recorrente, pelo que foi violado o artigo 12º, nº 2, do C.C.;

Q - Por outro lado, deve ser considerado orgânica e materialmente inconstitucional o D.L. 214/83, por ser matéria reservada à A.R., embora relativa;

R - É que se o Estatuto de Aposentação, aprovado pelo D.L. 498/72, de 9/12, foi aprovado por órgão que, à data da vigência da Constituição de 1933, era competente, o actual regime constitucional alterou radicalmente esse quadro;

S - Com efeito, parece inquestionável que os princípios informadores de um sistema de segurança social devem abranger as normas que regulam o Estatuto de Aposentação;

T - Caindo assim na previsão das alíneas b) e f) do nº 1 do artigo 168º da C.R.P.;

U - O que aliás se coaduna com a argumentação lógico-jurídica cimentada nestas alegações e é, pois, corolário lógico das conclusões anteriores;

V - Logo, não tendo o D.L. 214/83, de 25/5, sido aprovado ao abrigo de autorização legislativa, parece estar-se perante um caso de inconstitucionalidade orgânica e formal deste diploma legal;

X - O que se compagina com a tese da inconstitucionalidade material do artigo 108º-A da mesma lei ordinária."

Por sua vez, a entidade recorrida concluiu as suas alegações deste modo:

"1ª - A resolução da Direcção dos Serviços de Previdência da Caixa Geral de Depósitos, de 91.03.12, que determinou a perda da pensão da Recorrente durante um longo período, estava sujeita a recurso hierárquico necessário para o conselho de administração, nos termos dos artigos 108º-A do D.L. nº 498/72, 54º-A do D.L. nº 142/73 e 59º do D.L. nº 24.046, pelo que o recurso contencioso dela interposto, não tendo sido precedido daquele meio gracioso, devia ser rejeitado por falta de definitividade do acto impugnado, como foi;

2ª - As citadas normas não padecem de inconstitucionalidade material, contrariamente ao alegado pela Recorrente, pois não afectam, em qualquer medida, nem o direito à pensão de preço de sangue, nem o direito à impugnação contenciosa dos actos administrativos. Pelo contrário, tal exigência constitui até um meio suplementar de tutela do interesse dos particulares, permitindo aos seus titulares submeter a decisão lesiva à consideração de uma instância superior, sendo certo que nem temporariamente afecta os ditos direitos, atendendo aos efeitos suspensivos do referido meio gracioso;

3ª - O Tribunal Constitucional não deverá conhecer da alegação da Recorrente segundo a qual o Decreto-Lei nº 214/83, de 25 de Maio, é orgânica e formalmente inconstitucional, porquanto esse pretenso vício não foi alegado no decurso do processo;

4ª - Em todo o caso, tal alegação da Recorrente sempre teria de considerar-se totalmente improcedente, quer porque, como se referiu já, a exigência de recurso hierárquico necessário para o conselho de administração, não toca, de perto nem de longe, em qualquer direito, liberdade ou garantia dos particulares, antes lhes dispensando uma maior protecção, quer porque também não constitui qualquer alteração das bases do sistema de segurança social, cuja matéria se encontra bem definida nos artigos 63º e 64º da CRP. Trata-se, com efeito, de uma exigência puramente processual que não afecta, em qualquer medida, os direitos e garantias dos particulares em matéria de segurança social."

10. Corridos os vistos legais, cumpre decidir.



II
Fundamentação

11. A norma cuja inconstitucionalidade a recorrente suscitou durante o processo - o artigo 108º-A do Decreto-Lei nº 498/72, de 9 de Dezembro, aditado pelo DecretoLei nº 214/83, de 25 de Maio - tem o seguinte teor:

"1 - Haverá recurso hierárquico necessário para o conselho de administração das resoluções que:

a) Resolvam sobre a diminuição ou perda de pensão;

b) Resolvam sobre a negação ou extinção da qualidade de subscritor;

c) Resolvam sobre a denegação da realização de juntas médicas de revisão;

d) Resolvam sobre a denegação do subsídio por morte;

2 - Este recurso será interposto no prazo de 30 dias a contar do dia da notificação feita ao interessado da resolução recorrida."


No entender da recorrente, a exigência de recurso hierárquico necessário constante desta norma violaria o direito à pensão do preço de sangue, que constituirá um "direito social fundamental", consagrado no artigo 63º, nºs 1 e 4, da Constituição. Nesta perspectiva, a inconstitucionalidade resultaria de uma violação do direito à segurança social, incluído no Capítulo II do Título III da Parte I da Constituição e a que se aplicará o regime dos direitos, liberdades e garantias (constante, nomeadamente, do artigo 18º) desde que seja qualificado como "direito fundamental de natureza análoga" no sentido do artigo 17º (cf. Jorge Miranda, Manual de Direito Constitucional, IV, 2ª ed., 1993, p 139; Gomes Canotilho e Vital Moreira, Fundamentos da Constituição, 1991, p. 125, e Constituição da República Portuguesa Anotada, 3ª ed., 1993, p. 141; Vieira de Andrade, Os Direitos Fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976, 1983, p. 210).

12. É claro, porém, que a norma em crise não afecta, propriamente, o conteúdo do direito social em causa mas apenas, porventura, o seu exercício judicial. O que a recorrente questiona, afinal, é a restrição do recurso à via judicial, para ver satisfeito o direito à pensão de preço de sangue, através da exigência prévia de interposição de recurso hierárquico.
Deste modo, estará em causa o direito de acesso aos tribunais em geral (artigo 20º, nº 1, da Constituição) e, atendendo à natureza da relação jurídica controvertida, o direito de acesso aos tribunais administrativos, tal como é hoje garantido - após a entrada em vigor da Lei Constitucional nº 1/89 - pelo artigo 268º, nº 4, da Constituição:

"É garantido aos interessados recurso contencioso, com fundamento em ilegalidade, contra quaisquer actos administrativos, independentemente da sua forma, que lesem os seus direitos ou interesses legalmente protegidos."


Rigorosamente, esta norma é especial em relação à contida no artigo 20º, nº 1, da Constituição, visto que consagra o direito de acesso aos tribunais administrativos, aos quais compete solucionar litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais (artigo 214º, nº 3, da Constituição).
Ora, apesar de a recorrente não indicar expressamente como norma constitucional violada o artigo 268º, nº 4, da Constituição, o Tribunal Constitucional pode julgar inconstitu-cional a norma sub judicio por a considerar contrária àquela norma constitucional (artigo 79º-C da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro, aditado pela Lei nº 85/89, de 7 de Setembro).

13. A decisão da presente questão de constitucionalidade depende, pois, do sentido que se atribuir à norma do artigo 268º, nº 4, da Constituição. Na sua redacção actual, tal disposição parece alargar a garantia de recurso contencioso originariamente consagrada pelo legislador constituinte, uma vez que prescinde da expressa exigência de que este tenha por objecto um acto administrativo definitivo e executório - exigência que, na verdade, constava do texto primitivo e da versão dada pela Lei Constitucional nº 1/82 (ao artigo 268º, nº 3):

"É garantido aos interessados recurso contencioso com fundamento em ilegalidade, contra quaisquer actos administrativos definitivos e executórios, independen-temente da sua forma, bem como para obter o reconheci-mento de um direito ou interesse legalmente protegido."



Perante a evolução do texto constitucional, a doutrina administrativa divide-se: alguns autores entendem que não terá sido suprimida a exigência de que o recurso contencioso seja precedido de recurso hierárquico necessário, tendo em vista a formação de um acto administrativo verticalmente definitivo [cf. Ehrhardt Soares, "O acto administrativo", Scientia Juridica, XXXIX (1990), p. 34; Freitas do Amaral, "O projecto de Código de Contencioso Administrativo", Scientia Juridica, XLI (1992), p. 17]; outros sustentam que terá sido "inconstitucionalizada" qualquer exigência de recurso hierárquico necessário, concluindo que cabe sempre recurso contencioso de acto administrativo com eficácia externa, se bem que não verticalmente definitivo [cf. Paulo Otero, "As garantias impugnatórias dos particulares no Código do Procedimento Administrativo", Scientia Juridica, XLI (1992), p. 58 e ss.; Maria Teresa de Melo Ribeiro, "A eliminação do acto definitivo e executório na revisão constitucional de 1989", Direito e Justiça, VII (1993), p. 221 e ss.].

14. Em abono da primeira tese referida, podem recensear-se, em síntese, os seguintes argumentos:
a) A exigência de recurso hierárquico necessário proporciona à Administração Pública a possibilidade de revogar actos ilegais - e mesmo, mais amplamente do que sucede no recurso contencioso, que é de mera legalidade, a oportunidade de revogar actos inconvenientes (cf. Freitas do Amaral, Direito Administrativo, III, 1989, pp. 363-4), o que beneficia os administrados.
b) Essa exigência é instrumental da economia processual, evitando a pendência de recursos hierárquicos desnecessários e racionalizando o funcionamento dos tribunais administrativos.
c) Tal exigência, por fim, não constituirá uma verdadeira limitação do direito de acesso aos tribunais administrativos, por ter uma função puramente ordenadora do processo, nunca obstando a que os administrados interponham recurso contencioso do eventual indeferimento do recurso hierárquico necessário.

15. A tese oposta, por seu turno, pode contrapor a estes os seguintes argumentos:
a) Apesar da imediata interposição do recurso contencioso, a Administração Pública continua a poder revogar o acto "... até ao termo do prazo para a resposta ou contestação da autoridade recorrida" (artigo 47º da Lei de Processo nos Tribunais Administrativos).
b) O argumento da economia processual é reversível, visto que a supressão do recurso hierárquico necessário favorecerá a celeridade processual, objectivo igualmente valioso na actividade jurisdicional.
c) A supressão do recurso hierárquico necessário assegura o máximo respeito pelas garantias dos particulares, que, para além de se poderem prevalecer imediatamente da via contenciosa, continuarão a poder interpor recurso hierárquico (facultativo).

16. Mas não é exigível tomar posição nessa discussão para apreender, na sua essência mínima, a ratio da evolução do direito de acesso aos tribunais administrativos, relevante para efeitos de juízo de constitucionalidade.
A substituição da referência a "actos administrativos que lesem direitos ou interesses legalmente protegidos" não pode ser tida como irrelevante. De modo manifesto, a intenção normativa do legislador constitucional, objectivamente considerada, aponta para o aprofundamento das garantias dos administrados. Na perspectiva do legislador constitucional, a alteração ao nº 4 do artigo 268º significou o propósito de desvincular a garantia de recurso do conceito tradicional de acto definitivo e executório, pondo a sua tónica nos actos que são susceptíveis de lesar direitos ou interesses legalmente protegidos. Esses actos serão, desde logo, susceptíveis de impugnação contenciosa, ao abrigo do disposto na citada norma constitucional.
Objectivamente considerada, a evolução normativa revela a troca de um entendimento formal e conceptualista do direito de acesso aos tribunais administrativos por uma visão material, assente numa ideia de justiça orientada teleologicamente (afectada à tutela de direitos ou interesses).
Não se pode concluir, porém, que seja hoje inconstitucional qualquer exigência de recurso hierárquico necessário. Quando a interposição deste recurso não obsta a que o particular interponha no futuro, utilmente, em caso de indeferimento, recurso contencioso, não terá sido violado o direito de acesso aos tribunais administrativos, tal como é conformado pelo artigo 268º, nº 4, da Constituição. Nesta situação, a precedência de recurso hierárquico tem como efeito determinar o início do prazo para a interposição de recurso contencioso, sem o restringir nem acarretar a sua inutilidade.
Estará em causa, simplesmente, uma ordenação do processo jurisdicional, similar à que resulta do próprio estabelecimento de prazos para a interposição de recurso contencioso (artigo 28º da Lei de Processo nos Tribunais Administrativos), que só não valem relativamente a actos administrativos nulos - (assim artigo 134º, nºs 1 e 2 do Código do Procedimento Administrativo; sobre essa questão, cf. Freitas do Amaral, Direito Administrativo, III, 1989, p. 334, e Jorge Miranda, "O regime dos direitos, liberdades e garantias", Estudos sobre a Constituição, III, 1979, p.77).

17. No caso vertente, a exigência de prévia interposição de recurso hierárquico (necessário) contida no artigo 108ºA do Decreto-Lei nº 498/72, aditado pelo DecretoLei nº 214/83, não obsta à posterior interposição de recurso contencioso nem afecta a sua utilidade. Tal exigência não contraria, por conseguinte, a norma do nº 4 do artigo 268º da Constituição.
Conclui-se, pois, que não é inconstitucional a norma contida no artigo 108º-A do Decreto-Lei nº 498/72, aditado pelo Decreto-Lei nº 214/83.



III
Decisão

18. Nestes termos, decide-se negar provimento ao recurso e confirmar, na parte impugnada, a decisão recorrida.


Lisboa, 20 de Março de 1996
Maria Fernanda Palma
Antero Alves Monteiro Diniz
Alberto Tavares da Costa
Vitor Nunes de Almeida
Armindo Ribeiro Mendes
José Manuel Cardoso da Costa

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